sábado, 28 de janeiro de 2017

Setembro de 1971 a picada Macomia-Mataca, por José Leitão

D'Abranches Leitão G. José 
para PICADAS DO CABO DELGADO
Mais um "Diario".... Setembro de 1971
A picada Macomia-Mataca


O pelotāo da 2750 que vem da Mataca ao nosso encontro fez alto. 
Alguns soldados montam segurança aos flancos de ambas as colunas enquanto outros perscrutam cada centímetro quadrado do terreno entre elas, com "as picas de bambu", para que nenhuma mina escape. 

O Alferes que comandava esse pelotāo informa que tudo está bem....


Levamos alguns civis connosco. 
A probabilidade de sermos atacados, diminui assim.

Fazemos uma pausa. 

O Uvaldo, um transmontano baixote mas de rija tempera, oferece-me o seu cantil, sabendo que eu ja devo ter o meu sem gota de água. 
Agradeço e digo-lhe que pode tirar uma Laurentina, da minha mochila. Ainda estao relativamente frescas. 

Os soldados de ambas as colunas abraçam- se. 
O Vidinha, sempre a meu lado, grande companheiro, pergunta a outro soldado da Mataca, por um seu conterrâneo que está na 2750. 
Amigos que os caprichos da guerra juntam e separam. 

De arma ao ombro e descontraídos, confiantes no chão seguro que já foi varrido pelos picadores e que cem botas já calcaram, aumentando confortavelmente as probabilidades de sobrevivência, avançamos em direçāo à Mataca, para entregar os 2 Hunimogs carregados com mantimentos. 

A descida da Serra...torna-se um pesadelo, pois a picada está muito escorregadia. 
Era tempo de chuva e o matope...torna-se "manteiga"!!! 
Vou ao lado do condutor de um dos Hunimogs, o Crespo, natural de Barcelos, com 1,90 de altura, que me vai dizendo que os travões não estão lá muitos bons, devido ao aquecimento. 
O declive assusta os mais corajosos. 

 Uff a zona mais crítica foi ultrapassada. 

Avistamos o aquartelamento ao longe. 
Mas nada de baldas ok? Grito eu para a minha Seção.

Chegámos! 

O Bar fica do lado direito da "porta de armas". 
O ritual habitual! 
As primeiras latas de cerveja, despejadas pela cabeça abaixo. 
Depois uma rodada, paga por mim, para todo o pelotāo. 
Era assim que fazia depois de mais uma "coluna"!!!!



José Leitao 
CCAVª 2752

Comentários
Armando Guterres Fizemos algumas colunas, a meio da comissão, com troca de carga no Alto do Delepa. A surpresa da coluna era eliminada, sempre que se ouvia diversos carros em afinações. Fev 72 a Março 74.

Aracire Oliveira Quando corria bem à chegada era uma alegria, só que na picada de Omar só me lembro uma vês tudo ter corrido sem mortos ou feridos...

D'Abranches Leitão G. José Alto do Delepa...malta do 1° Grupo de Combate -CCAV 2751

D'Abranches Leitão G. José Identifico os Furrieis Mil° Rosales e o Alegria (já falecido)...e o Cabo Salavessa (?)

domingo, 22 de janeiro de 2017

Operação Canacassala..., por M. Aldeias

Operação Canacassala
ou
A última operação da Força de intervenção na região dos Dembos.

Acampamento no Canacassala, em Dezembro de 1972
O local onde, de 4 a 21 de Janeiro de 1973, a Força de Intervenção (FI) instalou a sua base provisória tinha sido uma criteriosa e excelente escolha estratégica. Situava-se no cimo de um enorme morro, perto da antiga ponte sobre o rio Onzo e junto da famigerada e perigosa picada “Via Láctea”, que saía de Nambuangongo, a cerca de 180 kms a norte de Luanda, e se embrenhava sinuosa e caprichosamente algumas dezenas de quilómetros pela majestosa, agreste e selvagem floresta dos Dembos. Era uma zona muito acidentada, de difícil acesso e com florestas virgens impressionantes, que cobriam de um manto verde a perder de vista os vales que serpenteavam os morros.
Era algures no seio desta medonha, misteriosa e densa mata, aproveitando-se das excelentes e únicas condições de refúgio que lhes proporcionava, que o Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA) tinha instalado, desde há algum tempo, o quartel-general da 1ª Região Militar. Daqui saíam os seus astutos e destemidos guerrilheiros para montar minas, emboscadas e ataques aos aquartelamentos das nossas tropas, disseminados por esta vasta e remota região.
Ao contrário das tropas de quadrícula, que apenas actuavam e tinham sobre a sua responsabilidade as zonas onde estavam instaladas, a FI encontrava-se baseada em Luanda, donde saía por períodos de duas a três semanas para qualquer local do norte de Angola onde o inimigo estivesse mais activo e agressivo. Efectuava vários tipos de acções, desde emboscadas a golpes de mão, destruição de bases inimigas, e também nomadizações, que consistiam no patrulhamento apeado de determinadas zonas, para procurar indícios da guerrilha e criar instabilidade nas suas tropas. Findas estas difíceis e extenuantes operações, regressava a Luanda e aí recuperava da intensa actividade operacional a que fora sujeita.
O Batalhão de Caçadores 3848 era constituído pela Companhia de Comandos e Serviços (CCS) e três companhias operacionais: os Escorpiões, os Carolas e os Panteras, que tinham adquirido uma vasta e inigualável experiência operacional durante os dezasseis longos meses passados como tropa de quadrícula na conturbada região de Nambuangongo, uma zona de guerra por excelência.
Agora, estas três companhias estavam acampadas na nova base de Canacassala, onde, nos últimos dias, vinham desencadeando várias operações de nomadização, emboscadas e golpes de mão às bases IN com o intuito de aliviar a pressão que o MPLA estava a exercer na zona.
A derradeira e mais desgastante operação estava reservada para Os Carolas. Tinha como objectivo assaltar e destruir as bases IN referenciadas e prosseguir em nomadização até ao aquartelamento da Beira Baixa, onde seriam recolhidos para regressarem em coluna a Luanda.
Aproveitando-se da escuridão protectora da noite, Os Carolas saíram, levando à frente como guia um homem natural da zona e elemento de um dos Grupos Especiais de tropas nativas, os GEs, como eram habitualmente conhecidos.
Com cerca de trinta anos, aparentando boa robustez física, o nosso guia GE envergava uma farda exactamente igual à nossa, ou seja, camuflado, boné e botas para todo o terreno. Na cara brilhavam-lhe dois olhos inteligentes e perspicazes e uns dentes brancos como a cal, que contrastavam coma cor escura da pele. A meio da testa, sobressaía uma profunda cicatriz provocada por um ferimento de bala. De mãos fortes e calejadas, segurava numa a espingarda metralhadora, enquanto com a outra empunhava a catana, com que ia cortando o labiríntico emaranhado de lianas e outros arbustos que lhe surgiam no caminho. Abria desta forma um estreito e apertado túnel, por onde, em fila indiana e no maior silêncio, íamos progredindo lentamente. A meio da fila onde me encontrava, o silêncio era apenas quebrado pelo leve ruído das botas que pisavam as folhas secas.
Teria sido muito menos extenuante e cansativo avançar pelos trilhos existentes na mata, se isso não fosse perigoso e arriscado, porque eram propícios a emboscadas, a minas escondidas e outras perigosas armadilhas. Apesar da enorme tentação em os utilizarmos, o bom senso impunha-nos o sacrifício e a segurança: a abertura de novos trilhos nunca antes utilizados através de uma densa, misteriosa e quase impenetrável selva. Além do mais, ainda estava fresco na nossa memória o enorme buraco provocado por um desses temíveis e traiçoeiros engenhos, que, dias antes, levara a perna a um camarada nosso.
Caminhávamos há já alguns dias de armas aperradas, olhos e ouvidos sempre atentos, através da imensa e enigmática floresta tropical, que nos impunha respeito e nos fazia sentir pequenos e insignificantes. Procurávamos sempre movimentar-nos com a maior celeridade possível, mas sem nunca descurarmos as precauções e o silêncio, para evitar sermos referenciados. Até porque o inimigo era astuto, destemido e profundo conhecedor da floresta. E também ele mostrava grande mobilidade e agressividade, flagelando constantemente e com dureza as nossas forças. Daí que o medo da morte, o inimigo, a fome, a sede e o cansaço, constituíam verdadeiros desafios às nossas capacidades de resistência, jovens soldados tornados guerrilheiros pelas circunstâncias e endurecidos por mais de vinte meses de guerra no mato angolano. Este oceano de imensas dificuldades era agravado pelo receio constante de sofrermos alguma baixa no interior de uma floresta virgem e inacessível, onde seria impossível proceder a qualquer evacuação. E também não seria tarefa fácil carregar com os mortos ou feridos às costas. Tudo isto contribuía para aumentar a angústia e ansiedade, aumentando-nos o desejo de sairmos daqui o mais rapidamente possível.
A progressão tornava-se cada vez mais penosa, difícil e extenuante. A luz solar penetrava com dificuldade por entre a intrincada vegetação. O odor das folhas putrefactas inebriava-nos. Pequenos mosquitos entravam-nos pelos olhos, nariz e boca, deixando um desagradável e repugnante sabor amargo. O calor e a humidade colava-nos à pele o camuflado já rasgado, sujo e com um cheiro nauseabundo e asqueroso.
Durante esta terrível, árdua e espinhosa odisseia, entrámos por duas vezes no interior de bases militares IN que, por razões de ordem táctica, se encontravam afastadas da base principal e funcionavam como unidades de defesa alargada. Aqui, a vegetação rasteira fora retirada, ficando apenas as árvores de grande porte que, com as frondosas e espessas copas, evitavam que estas fossem referenciadas pela aviação.
Tudo indiciava que os ocupantes as tinham abandonado de forma precipitada e brusca ao pressentirem a nossa chegada, porque o lume estava ainda aceso e livros e vários utensílios encontravam-se espalhados pelo chão ou em cima das mesas.
Dentro destas bases ficávamos vulneráveis. As balas assobiavam e cantavam a morte sobre as nossas cabeças, porque o IN mantinha-se oculto na mata circundante, observando-nos e reagindo com intensidade e violência. Sob esta sensação indescritível de hecatombe destruidora, avançávamos costas com costas, disparando e correndo em busca da protecção da mata. Era crucial e imperioso abandonar rapidamente estes locais onde reinava o medo, o terror e a morte, onde o perigo nos espreitava constantemente, não nos dando sequer tempo ou oportunidade de proceder à destruição destas bases disseminadas na selva.
Ao quinto dia de progressão, já bastante debilitados pela fome e pela sede, extremamente cansados, já inclusive distanciados uns dos outros na fila, começámos a sair do imenso verde desta floresta hostil, adversa e infindável. Porém, o inimigo dava-nos as boas vindas ao espaço aberto e ao tórrido sol Africano. Foram momentos de ansiedade terrível e indescritível com as balas mais uma vez a entoarem a sinfonia da morte.
O IN utilizava metralhadoras pesadas com um matraquear sepulcral, rouco e cavernoso, e as irritantes costureirinhas com aquele estampido metálico, enervante e contundente, e com as suas rajadas cadenciadas e irritantes, que ficaram para sempre na memória de todos os que tiveram a malfazeja sorte de com elas se confrontarem no palco da guerra colonial, fazendo-nos recordar as máquinas de costura das nossas mães na longínqua e saudosa metrópole.
Através do capim que nos feria as mãos, deixando-as em sangue, e nos dava pelo peito, rastejando com grande sofrimento, alcançámos ilesos a segurança precária dum alto morro, onde rapidamente montámos um círculo de segurança e ficámos em posição mais vantajosa em relação ao astucioso e matreiro inimigo.
Durante esta longa, tenebrosa e aterradora epopeia, tínhamos penetrado profundamente em território IN e efectuado um desvio bastante acentuado do itinerário previsto. Foi quando o nosso guia confessou estar perdido. Não fora a utilização das comunicações pela rádio, dificilmente alcançaríamos uma zona para recolha do pessoal. Pouco depois da comunicação com a sede, tivemos a ajuda de um heli-canhão, que nos ajudou a referenciar a nossa posição. Encontrávamo-nos a seis dias de marcha do quartel mais próximo. Mas a sua acção não se limitou à nossa referenciação no espaço operacional. Antes de regressar à base, contribuiu para pôr o inimigo temporariamente em debandada. Fomos também informados, via rádio, de que o plano de operações não incluía uma possível evacuação, devido à escassez de meios aéreos, e que, depois de reabastecidos de ração de combate e água, teríamos que prosseguir a marcha. Uma tarefa, sem dúvida, quase impossível de concretizar, dadas as depauperadas e extenuantes condições físicas em que nos encontrávamos.
No cume de um aterrador e apavorante morro, livres de surpresas desagradáveis, mas sem a protecção das copas da vegetação angolana, sem comida, sem água e bastante debilitados pelas agruras do clima, estávamos a ser violentamente fustigados pelo escaldante, abrasador e sufocante sol africano e, pior ainda, cercados por um inimigo inclemente e cada vez mais belicoso, hostil, forte e destemido. Tudo contribuía para nos colocar num feixe de nervos e com a nossa já bastante fragilizada resistência física e psicológica cada vez mais em baixo. O nosso aspecto estava longe de ser o melhor: barbas por fazer, camuflados rotos, cobertos de lama e com um cheiro pestilento, muito pior que um bando de salteadores. Éramos um flagrante contraste. De um lado, aquela paisagem edílica, verde e  luxuriante aos nossos pés; do outro, um grupo completamente estoirado e a necessitar urgentemente de um revigorante repouso. E a situação a degradar-se cada vez mais, Mas, quando o desespero parecia ser a nossa situação das próximas horas ou talvez dias, recebemos pela rádio a melhor informação: dentro de poucas horas, os helicópteros da força aérea efectuariam a evacuação de todo o pessoal.
Recebida a notícia, os nossos olhares deixaram de admirar o vasto oceano verde que se espraiava à volta do morro, para começarem a esquadrinhar ansiosamente a linha do horizonte. E respirámos de alívio quando do nada se começaram a vislumbrar, a uma distância razoável, três pontos negros que aumentavam progressivamente e desapareciam por detrás de um ou outro morro, para logo voltarem a aparecer “rapando” a colina seguinte. Não havia dúvidas! Ali estavam os helicópteros que nos vinham socorrer.
O ruído tornou-se ensurdecedor. O heli-canhão descrevia círculos por sobre as nossas cabeças, fazendo fogo sobre o inimigo próximo, que de imediato bateu em retirada, dispersando-se em fuga no meio do mato. Então, à vez, os dois helis mais pequenos, equipados com duas macas, uma de cada lado, deram início à evacuação, começando pelos mais debilitados, enquanto o restante pessoal procurava manter a segurança. Ao fim de algum tempo, com o apoio de helicópteros com maior capacidade, os Pumas, que tão relevantes serviços prestaram , terminava uma operação desgastante de seis dias consecutivos em plena selva angolana.
Não foi aqui narrado um décimo do sofrimento e aflição por que passaram os jovens soldados de vinte anos, durante esta árdua, penosa e fatigante odisseia, em que, na primavera da vida, se viram atirados para o lodaçal de uma desmerecida, injusta e cruel guerra.
Já em Luanda, fomos todos sujeitos a várias juntas médicas, que atribuíram a inoperacionalidade a 92% dos intervenientes desta operação e preconizaram também um considerável número de medidas a serem implementadas durante um período de 22 dias, para debelar a crise.
No final deste período, todo o pessoal foi sujeito a uma nova junta médica, a 15 de Fevereiro de 1973, a qual definitivamente determinou que o Batalhão de Caçadores 3848, «O excelente e valoroso» fosse ingloriamente considerado inoperacional.
A 27 de Fevereiro de 1973, iniciou-se a deslocação da CCS e das diferentes companhias, ou seja, a C. Caç. 3386 (Os Carolas) e C. Caç. 3387 (Os Escorpiões) para os confins do sertão angolano, bastante distantes da zona de guerra, onde permanecemos na paz dos Deuses até ao final da comissão.
M. Aldeias - maldeias@gmail.com

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

A estranheza do regresso a casa, por Manuel Bastos

Luís Leote

Cacimbo
Mais uma bela "poesia" de Manuel Bastos!!!
Comprem o Livro..... " Cacimbados - A Vida por um fio "


A estranheza do regresso a casa
....
O táxi passa no Largo da Capela e o sino dá as horas.
Não sei quantas.
As quatro cornetas do relógio elétrico da torre de Aguim esganiçam-se com as ave-marias e depois berram as horas a que ninguém dá atenção.
Acho que as pessoas se habituaram àquele despropósito de decibéis como se habituam a um mau cheiro.

O táxi desce lentamente a rua da Portela com o condutor a esperar pacientemente que as pessoas se afastem.

As pessoas em Aguim conversam nas ruas e afastam-se apenas por gentileza quando um carro quer passar, o que parece ser entendido pelo taxista que não dá sinais de indignação ou sequer de impaciência.

Agora me lembro que o taxista me fez uma pergunta há imenso tempo e respondo meio distraído:
– Sim, isto da perna foi na guerra.
– Foi na Guiné?

É difícil imaginar agora que as pessoas hão de desaparecer das ruas, que um dia a urbanidade há de contaminar esta povoação como uma virose e destruir completamente a sua pitoresca ruralidade e então, por não terem nada que fazer nos campos as pessoas hão de sair das suas casas para os empregos o mais rapidamente possível, deixando as ruas vazias.

É sempre difícil imaginar que uma coisa a que nos habituámos e que criou a identidade de algo que nos era familiar há de desaparecer para sempre, para dar lugar a uma outra coisa no mesmo sítio, não porque seja melhor, não porque constitua uma evolução, mas apenas e tão só porque tudo neste mundo parece estar condenado a cumprir a regra mais cruel e estúpida de toda a criação: tudo tem de ter um fim.

Mas agora e aqui, está tudo na mesma e é isso justamente que me surpreende.
O mesmo ritmo, a mesma respiração, a mesma atmosfera, a mesma vida; como se eu não tivesse saído daqui há mais de meia hora.

Cheguei a casa.
Parece que deixei o filme da “Aldeia da Roupa Branca” a meio, que depois assisti à pior parte do "Dia mais Longo", mas que entretanto regressei.
Tudo na mesma em Aguim e eu muito mais velho.
Segundo a teoria da relatividade, deveria ser o contrário.

Deixei o taxista de novo sem resposta…
– Não foi na Guiné, foi em Moçambique.
– Aquilo lá está mau, não está?

A luz sólida traz-me à memória, por contraste, a luz fluida de África.
Os objetos aqui mais tangíveis, quase ferindo os olhos, como coisas inorgânicas, áridas, quase feitas só de luz, sem a humidade omnipresente da selva que dá a todas as coisas uma viscosidade animal.

Dá-me a ideia que ainda não penetrei totalmente neste mundo, que ainda não me é possível perceber todos os pormenores.
O próprio som no exterior do táxi tem dissonâncias estranhas, como se as vozes das pessoas por quem passamos fossem declamadas com o tom mal colocado e os ruídos que me chegam aos ouvidos tivessem uma estranheza, um desconserto, a fazerem lembrar uma filarmónica a afinar os instrumentos antes do espetáculo.
Parece que estou num plateau durante a rodagem de um filme, sem pertencer ao elenco.

O táxi penetra no cenário, num travelling lento e os figurantes ignoram-no.
Ou antes, passam eles por nós, desfilando de um lado e do outro.

– Aquilo lá está mesmo mau.
– Mas pra si acabou.


Olho a toda a volta tentando prestar atenção a tudo o que me vai envolvendo, tentando apreender os pormenores.
As pessoas rindo despreocupadas.
Duas mulheres falando em voz alta a uma distância de vinte metros, sem esperar que se aproximem uma da outra e continuando a falar alto, mesmo quando já estão frente a frente.
Um gato sobre um muro.
Um cão passando por baixo e o gato enfolando à sua passagem e a esvaziar depois lentamente, à medida que o cão se afasta.

No Sobreirinho, um carro de bois faz com que o taxista pare o táxi.
Uma junta de bois babando-se de dolência e extenuação, arrastando uma enorme carrada de estrume. Os bois, à vez, vão largando sobre o alcatrão do Largo do Sobreirinho, à medida que passam por nós, tartes frescas e fumegantes de bosta.

O taxista abre o vidro como se tivesse sentido convidado para fruir o aroma daquele festim escatológico.
Eu também abro o meu e sinto o cheiro quente do estrume e depois o aroma fresco da bosta.
De janelas abertas, o som do exterior aumenta e torna-se mais natural como se tivéssemos ambos regulado o equalizador de uma aparelhagem sonora.

O carro de bois segue pela rua da Lomba e o táxi faz os últimos 100 metros atrás dele, ao ralenti.

– É verdade… Para mim acabou.
– Você tem saudades disto, não tem?

Algo muda em mim repentinamente.
Como quando temos uma dúvida e de repente se nos faz luz; como quando estamos dolentes com a preguiça matinal, sem vontade de abrirmos os olhos e de repente sentimos a lucidez da vigília; como quando estamos distraídos no meio de uma multidão de estranhos e de repente um rosto familiar sorri para nós.
Realizou-se tudo em meu redor como se eu tivesse acordado.
Cheguei a casa.

Parece impossível, agora, que tenha deixado para trás tanta terra, tanto mar, tanta gente, tanta ansiedade, tanta dor.
Parece que atravessei um túnel imenso e que acabei agora de sair para a luz do dia.
Um passado de que já não faço parte.
Uma história que não quer ser contada, uma história que já não sinto a menor vontade de contar.

– Tenho mesmo saudades disto…

Cheguei a casa.
A 50 metros à minha frente, a minha mãe e a Ti Maria do Zé Sécio conversam ao sol.


Manuel Bastos
In....Cacimbados - A Vida por um fio.