A Guerra e outras....COISAS.
O Navio Niassa.
Quando é que começamos a perder a guerra?
Começamos a perder a guerra, desde o primeiro dia, a primeira hora, o primeiro minuto, em que colocamos os pés dentro daquele navio, no momento em que começamos a subir a escada, que nos levaria ao interior daquele antro, ao interior daqueles porões, no momento em que deixamos as nossas malas em cima de “camas” sem colchões, imundas.
Embarquei no Niassa, no dia 3 de Agosto de 1967, nesse tempo ainda não existia refeitório, as casas de banho situavam-se no convés do navio, a urina e tudo o resto, escorriam pelo convés do navio até chegarem ao mar.
Não existiam duches de água doce, durante quase um mês fizemos a nossa higiene pessoal com água do mar, só água do mar.
Ninguém consegue descrever o que era, o que foi a nossa viagem até terras africanas, até Moçambique.
No meu caso pessoal, foram vinte e um dias, até chegarmos a Lourenço Marques, onde fiquei durante dois meses, o resto da “carne para canhão” seguiu para norte, para Cabo Delgado, e foram mais seis dias de viagem.
Ainda hoje, tenho alguma dificuldade em contar, explicar, o que foi aquela viagem.
Nós, não merecemos isto, dizia-me o José Paiva Carromeu, ele habituado ás lides marítimas, ele que trabalhou, desde a mais tenra idade, nos barcos de transporte de mercadorias, que faziam a travessia do rio Tejo, entre a Trafaria e Lisboa.
Dormimos, noites e noites no convés do navio, ao frio, ao relento, tendo com agasalho a única manta que nos tinham fornecido.
A comida era infecta, pior do que em qualquer quartel, pior do que tudo aquilo, que já tínhamos comido, durante os sete meses anteriores, antes de embarcarmos a bordo do navio Niassa.
Onde comíamos?
No convés, de prato e púcaro nas mãos, sujeitos a que alguém fosse urinar borda fora e que salpicos de urina se misturassem com o que nos davam para comer.
Evidentemente que existia um bar, um pequeno bar, um balcão de atendimento, onde um tripulante qualquer fazia o seu negócio, vendendo de tudo e mais alguma coisa, sandes, bolachas, tabaco, cerveja e outras coisas mais.
Foi a nossa bóia de salvação, enquanto tivemos dinheiro, enquanto demos a ganhar uns bons tostões, ao explorador do dito bar.
Perdemos a guerra, no primeiro dia em que começamos a ser “tratados” como animais, pior do que certos animais.
Como dizia o Quintela, - o meu cão de certeza absoluta que se recusava a comer o que nós comemos.
Durante anos, muitos anos, de 1961 a 1974, foi assim que os “salvadores” do império foram tratados. No regresso, em Setembro de 1969, já existia um refeitório, mesas corridas, bancos corridos.
Imaginam o que era comer naquele refeitório, quando o mar estava alterado, quando um dos nossos companheiros vomitava, ou quando os pratos vaziam um vai e vem, entre uma ponta e a outra da mesa.
No regresso, foi mais fácil a nossa viagem, sabíamos que o inferno acabaria no momento em que o Niassa, tocasse um caís qualquer de Lisboa.
Conto porque vivi e não porque me contaram.
Imaginem que eu solicitava a todos os meus companheiros, a todos aqueles que foram transportados no navio Niassa, que descrevessem, um dia, uma hora, daquela viagem, de certeza absoluta que muitos, ao lerem ou ao ouvirem essas recordações, diriam....não....não....isto é ficção.
Desembarcamos em Lisboa, no dia 12 de Outubro de 1969, juro-vos que durante meses e meses, mantive nas narinas o cheiro dos porões do Niassa.
Quem ganhou com aquela guerra?
Nós, a chamada tropa “macaca” perdemos.
Quando é que perdemos a guerra?
No primeiro dia em que colocamos os pés no primeiro degrau das escadas de acesso a um navio chamado Niassa.
As altas patentes, os altos mandatários, os Senhores da Guerra, esses, já se preparavam para mais uma comissão, num qualquer território, numa qualquer parcela ultramarina.
É FARTAR VILANAGEM.
Em honra de todos aqueles que morreram em nome da Pátria, sobretudo dos meus companheiros de viagem, que comigo partiram do cais da Fundição e que comigo regressaram, no navio Niassa, a Lisboa, dentro de quatro caixas de pinho.
Para o - Guerra – Amável – Bibiu e Camilo Alves. È em vossa memória que escrevi e que vou divulgando as minha memórias, as nossas recordações. RIP.
França – 12 de Outubro de 1979 ( Dez anos depois da nossa chegada a Lisboa.)