sábado, 24 de agosto de 2013

"Cacimbados - A Vida por um fio"

Deixo-vos este texto, que o Luís Leote colocou e que me fez chegar as lágrimas aos olhos...
 
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"Cacimbados - A Vida por um fio"

Autor: Manuel Bastos

A Difícil Transferência do Ódio

Éramos umas crianças. – Disse José da Fonte.
Os soldados são sempre crianças, Bastos, ainda se ao menos os que nos comandavam fossem homens, mas eram crianças como nós. E os que eram homens não iam para o mato.
 
Lá em Mueda conheceste alguém do quadro, que alinhasse nas operações de canhota nas mãos? Profissionais da guerra que nunca deram um tiro e os que foram para lá ao engano é que lhes guardavam o coiro! – Disse José da Fonte.
 
Está hoje um dia que me faz lembrar aquele céu de África. Trágico, não era? Um céu trágico aquele, em que de repente, do mais puro azul se desembrulhavam prá'li umas nuvens cor de sangue e rebentava uma tempestade dos diabos que nem dava tempo de tirarmos os ponchos, e ficávamos ensopados num instante. Aquilo era difícil, Bastos; também, se fosse fácil não estaríamos lá nós.
 
O povo e os filhos do povo é que pagam sempre a conta, não tenhas dúvidas, estejamos em guerra ou estejamos apenas a atravessar uma crise qualquer como agora. Quem paga somos sempre nós. E quando o problema acabar, mudam quem manda, criam uma nova ordem social, ou simplesmente mudam os nomes às coisas para darem a ideia que começou um novo jogo e que os que perderam, perderam e os que ganharam, ganharam: é o princípio do oportunismo. – Disse José da Fonte.
 
Era um tempo impreciso, esse em que vivíamos; o fim de uma época e o início de outra, não tivemos outro remédio senão ir aprendendo à medida que as coisas se revelavam para nós. Ninguém nos ensinou nada, a não ser odiar os que não nos queriam lá. E depois quando descobrimos que os nossos verdadeiros inimigos eram os que nos usavam como carne pra canhão, tivemos que transferir o nosso ódio. Mas o ódio vicia, Bastos, e não há nada mais difícil do que mudar o objecto do nosso ódio; e não há nada menos digno do que matar só pra não morrer. – Disse José da Fonte.
 
Bebe, pá, que lá não tinhas deste vinho. Um casqueiro com gorgulho e umas bazucas de Cuca e era um pau; e muita camaradagem, não era? Foi isso que fez de nós irmãos. O medo e a coragem; o tédio e a ansiedade; a solidão e a camaradagem – mas tudo intenso e real.
 
Tão intenso e real como um espinho na carne. Olha: no dia em que foste ferido, chorei; escondi-me lá num canto qualquer, fumei um cigarro e dei por mim a chorar. Lembrei-me que tu costumavas dizer que nós nunca choramos os mortos, choramo-nos a nós mesmos, ou porque antecipamos a nossa própria morte, ou porque nos sentimos mais sós. Lembras-te de dizeres isto? Lembrei-me de ti a disparar para o capim, em cima da Berliet, no dia em que um soldado do teu pelotão rebentou uma mina. Lembras-te? Depois escondi-me na cagadeira a fumar um cigarro, para ninguém me ver chorar.
 
Tu vieste embora e muita coisa se passou depois, mas sempre nós a gramar a pastilha, ainda por cima tivemos um cabrão dum capitão armado em herói que nos punha no mato dia sim, dia sim e que depois se desenfiou para o Comando enquanto nós continuámos lá a garantir-lhe o subsídio de zona de cem-por-cento, que ele ganhava no ar condicionado enquanto nós foçávamos no mato, quando já devíamos ter ido para um lugar mais calmo. Sabes que pensei em dar-lhe uma carga de porrada quando o encontrasse aqui. Mas como dizia Tertuliano, a vingança dá apenas um prazer momentâneo enquanto o perdão dá um prazer duradouro. Perdoei-lhe a carga de porrada mas não esquecerei que alguns morreram para ele ficar bem-visto junto das chefias militares.
 
Ó Bastos, se fosse fácil não era para nós. – Disse José da Fonte.
 
E agora, tantos anos depois? Até parece que falo com saudades daquilo, não é? Tenho saudades de mim, Bastos, tenho saudades de nós. Quando não acontecia uma desgraça éramos felizes. Tenho saudades de quando a vida era um milagre. Quando chegávamos todos; quando bebíamos um copo de cerveja morna e cantávamos todos desafinados, e então tu, pá, que cantavas mal como a porra; celebrávamos o dia por ele ter acabado com vinte e quatro horas. Para muitos, os dias acabaram a meio e nós ficávamos mais sós, como tu dizias.
 
Éramos umas crianças e o que fez a guerra de nós? Fez-nos homens? Acho que ficámos sem idade, Bastos. Na guerra os homens ficam sem idade. Crianças envelhecidas ou velhos prematuros. Por isso é que sentíamos a vida como um milagre, porque a vida é precária, Bastos, e nós aprendemos isso antes do tempo. Lá, ao menos, morríamos de coisas simples: um tiro, uma mina, um estilhaço de morteiro.
 
Agora morremos de coisas com nomes complicados: nefropatia túbulo-intersticial, angiossarcoma hepático, ou então que tal uma neoplasia broncopulmonar malígna? Vamo-nos degradando até as pessoas que gostam de nós ansiarem por que os deixemos em paz. A vida não é precária, a vida é altamente improvável. – Disse José da Fonte.
 
Neoplasia broncopulmonar malígna. Eu acho que devia ter morrido jovem, Bastos, para ser recordado com o desconsolo de me saberem desaparecido com uma vida inacabada; para que sentissem a falta de todas as realizações que ainda esperavam de mim; para que se recusassem a aceitar a minha morte como uma coisa natural e odiassem alguém por eu ter morrido, fosse quem fosse – que arranjassem maneira de encontrar o verdadeiro culpado pela minha morte; ou ao menos, pá, para que uma mulher bela e jovem vivesse chorando com uma foto minha junto ao peito; ou se tudo isso fosse pedir demais, para que sobre a minha sepultura não exibissem para sempre o retrato de um velho decrépito.
 
Neoplasia broncopulmonar malígna. Um dia destes e muito em breve, Bastos, chegará um dia para mim que não terá vinte e quatro horas. Ninguém ouvirá o estampido de uma mina, ninguém se esquecerá de si mesmo, para gritar: o Zé da Fonte está ferido! Ninguém se atirará para o chão em meu redor para fazer uma barreira de fogo. Nenhum enfermeiro se arriscará corajosamente, vindo a correr desarmado para me tentar salvar a vida. Chegará apenas uma notícia pelo telemóvel a dizer que eu bati as botas e será um alívio para as pessoas que gostam de mim.
 
Será que tu, Bastos, te vais esconder num sítio qualquer a fumar um cigarro, para que não te vejam chorar, porque a minha morte te aterroriza, porque fatalmente um dia será a tua vez? Não, Bastos, deixa-me acreditar que chorarás nesse dia como se eu tivesse tombado em combate, deixa-me acreditar que nesse dia beberás a tua cerveja morna sem cantares com a tua voz esganiçada, porque nesse dia não vieram todos, deixa-me acreditar que sentirás um ódio de morte mesmo que não saibas ao certo por quem, e que te apetecerá saltar para cima de uma Berliet a gritar: Venham cá filhos da puta, enquanto despejas o carregador da G3 no capim.
 
Bebe mais um copo, Bastos, que deste vinho não tínhamos lá, e deixa-me acreditar que nesse dia chorarás apenas por te sentires mais só.
– Disse José da Fonte, que, do que quer que morra e onde quer que morra, morrerá sempre em combate.

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