sábado, 1 de junho de 2019

Insónias..., por José Nobre

Insónias.
Navego, entre uma e outra recordação, as de ontem e as de agora, passageiras de um navio fantasma, perdido na bruma da minha imaginação. Revejo os dias, as noites, as madrugadas, embriago-me na brisa das memórias, na maré do passado. A chama da vela vacila, projectando nas paredes as sombras do que somos. Escrevo e volto a escrever, rasgo as folhas, transformo-as em bolas de papel, pontapeia-as para debaixo da cama e recomeço. Só escrevo merdas.
Quatro horas da manhã, aqui o dia chega mais cedo. Não sei se a garrafa de Brandy vai aguentar esta minha insónia, fixo-a, meio vazia, desafiando-me, ao lado da imagem da Nossa Senhora, não sei se é a da Fátima ou de outro local qualquer, mas isso não tem qualquer importância, as Nossas Senhoras são todas iguais e brancas, ainda não vi uma negra. Escrevo, escrevo e volto a escrever. Posso contar-te histórias, declamar-te poemas, dizer que não me esqueci, que não te esqueci. O Tavira é o que ressona mais, se o ressonar fosse uma arma, já tínhamos ganho esta merda de guerra, esta guerra que nos impuseram, que nos obrigam fazer, nós que só temos vinte anos. Vou rasgar esta folha e fazer mais uma bola de papel.
- Marroquino, apaga a vela.
- Eu apago a vela e tu não te peidas mais.
( Muidumbe – Cabo Delgado – Moçambique – Madrugada de 23/24 de Novembro de 1967 )

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Cá vou andando..., por José Nobre



José Nobre 
2019/05/09

Cá Vou Andando.
A propósito de - Nunca Atirei Pedras Aos Cães.
A guerra do ultramar. 
A minha foi em Moçambique.



Nada sei, nada,ou quase nada, das outras guerras. 
O que escrevo aqui no FB, foi vivido por mim e mais cento e setenta gajos.
Tento falar de todos,com respeito e algum carinho.

Nas minhas vivências em África, não existem heróis, porque não os conheci, porque não os vi.
Convivi com gente, cujo único desejo era voltarem vivos e sem mazelas. 
Tentávamos todos salvar a pele, mesmo que para tal,fosse necessário matar.


Existem na Internet, dezenas e dezenas de blogues, que falam da guerra ultramarina.
Alguns com fotos e personagens que nada têm a ver com a guerra,a nossa guerra. 
Se conheci heróis, foram heróis improváveis, como por exemplo um enfermeiro que ajudou ao nascimento da várias crianças(negras),em vários sítios por onde passou.

A guerra só existiu, para todos aqueles que tinham uma graduação até capitão, os outros, todos os outros,não fizeram a guerra, viveram da guerra e do estatuto que a mesma proporcionava.
Vejo fotos de altas patentes,de Coronéis, de Tenentes Coronéis, fotos dos tais que nunca "fizeram o mato", com o peito cheio de medalhas, mas sem nunca terem provado o sabor de uma Ração de Combate,( no mato) sem nunca terem sentido o frio do medo, o silvar de uma bala, o rebentamento de uma mina. 
Esses,que aparecem sempre no dia do Combatente, para colocar mais uma coroa de flores, num qualquer monumento aos mortos do ultramar, numa qualquer localidade de Portugal.

" A guerra não foi só aquilo que escreves." 
Pois não, mas também foi.
É o que eu chamo de... o lado humano da guerra,como se fosse possível existir humanidade num conflito armado.

As armas que me foram entregues, não me transformaram em herói, nem a G3, nem as granadas, nem os carregadores cheios de balas, nem o camuflado.
Era unicamente um gajo que não queria "lerpar".
Consegui, apesar das emboscadas, apesar das minas, apesar das picadas para Mueda, para Muidumbe,para Nangade, para Cassacatiza. 
Outros, não sobreviveram. 
É para eles, para todos eles, que vou escrevendo as minhas "merdas."

A Pátria, deu-nos uma farda, uma arma, uma ideologia, uma história para salvar.......depois deixou-nos num caís qualquer de Lisboa, como mercadoria fora de prazo. 
A Pátria que nem os mortos sabe HONRAR...aqueles que já nada lhe pedem, mas que lhe entregaram a VIDA de ....MÃO BEIJADA...com o respeito que a CHAMADA ....PÁTRIA ....lhes merecia.

Apontamentos - Moçambique - Portimão

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

O Regresso..., por José Nobre

Nunca Atirei Pedras Aos Cães.
O Regresso.

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Voltámos todos, naquela manhã de 12 de Outubro de 1969. 
Voltámos todos, não faltava nenhum. 


Um dia chuvoso e o cais de Alcântara a abarrotar de todos aqueles que nos esperavam. 

Milhares de braços no ar a nos acenarem, braços que se abriam, choros gritos. 
Não, não, vocês não morreram, vocês vão descer comigo esta escada, os últimos degraus da nossa aventura africana. 

Foram vinte e seis meses, caraças, não foram vinte e seis semanas ou dias.
Vamos descer juntos, nós que nunca nos separamos, quero-te ver abraçar o teu filho e a tua mulher, Amável. 
Quero conhecer a família do, Camilo Alves, do Bibiu e do Guerra. 
Vamos descer a escada deste navio fantasma, olhar para Lisboa...voltar a pisar Lisboa e gritar....Voltamos Todos. 

Não, não. vocês não ficaram naquela merda de picada em Cabo Delgado, naquela picada entre, Nangade e Pundanhar.....
Vocês vão descer comigo esta escada. 
Faltam quantos degraus? 
Caralho, pá....foram meses e meses longe desta gente toda. 
Vejo o teu sorriso, Amável, ouço a pronuncia do norte do Camilo Alves. 
Volto a Reguengos de Monsaraz, sento-me na mesa de um café, aquele mesmo ao lado da igreja, aquele que o Bibiu falava. 
Ouço o alferes, Guerra, gritar,,,,estou aqui.

Voltamos todos, ninguém ficou para trás. 
O navio fantasma, aparece e desaparece. 
Mais um degrau da escada,despachem-se. 
Chegamos Todos. ~
Lisboa, um dia cinzento, o dia do nosso regresso. 
VOLTAMOS TODOS.
Eu, nunca me esquecerei de vocês. 

Para os meus quatro companheiros que regressaram dentro de quatro caixas de pinho. 
Amável - Guerra - Bibiu - Camilo Alves.
Apontamentos - Portimão Dezembro de 1969

domingo, 13 de janeiro de 2019

A Guerra e outras....COISAS, O Navio Niassa, por José Nobre

A Guerra e outras....COISAS.
O Navio Niassa.


Quando é que começamos a perder a guerra? 
Começamos a perder a guerra, desde o primeiro dia, a primeira hora, o primeiro minuto, em que colocamos os pés dentro daquele navio, no momento em que começamos a subir a escada, que nos levaria ao interior daquele antro, ao interior daqueles porões, no momento em que deixamos as nossas malas em cima de “camas” sem colchões, imundas. 

Embarquei no Niassa, no dia 3 de Agosto de 1967, nesse tempo ainda não existia refeitório, as casas de banho situavam-se no convés do navio, a urina e tudo o resto, escorriam pelo convés do navio até chegarem ao mar. 
Não existiam duches de água doce, durante quase um mês fizemos a nossa higiene pessoal com água do mar, só água do mar. 

Ninguém consegue descrever o que era, o que foi a nossa viagem até terras africanas, até Moçambique. 
No meu caso pessoal, foram vinte e um dias, até chegarmos a Lourenço Marques, onde fiquei durante dois meses, o resto da “carne para canhão” seguiu para norte, para Cabo Delgado, e foram mais seis dias de viagem. 

Ainda hoje, tenho alguma dificuldade em contar, explicar, o que foi aquela viagem. 
Nós, não merecemos isto, dizia-me o José Paiva Carromeu, ele habituado ás lides marítimas, ele que trabalhou, desde a mais tenra idade, nos barcos de transporte de mercadorias, que faziam a travessia do rio Tejo, entre a Trafaria e Lisboa. 

Dormimos, noites e noites no convés do navio, ao frio, ao relento, tendo com agasalho a única manta que nos tinham fornecido. 
A comida era infecta, pior do que em qualquer quartel, pior do que tudo aquilo, que já tínhamos comido, durante os sete meses anteriores, antes de embarcarmos a bordo do navio Niassa. 
Onde comíamos? 
No convés, de prato e púcaro nas mãos, sujeitos a que alguém fosse urinar borda fora e que salpicos de urina se misturassem com o que nos davam para comer. 

Evidentemente que existia um bar, um pequeno bar, um balcão de atendimento, onde um tripulante qualquer fazia o seu negócio, vendendo de tudo e mais alguma coisa, sandes, bolachas, tabaco, cerveja e outras coisas mais. 
Foi a nossa bóia de salvação, enquanto tivemos dinheiro, enquanto demos a ganhar uns bons tostões, ao explorador do dito bar.


Perdemos a guerra, no primeiro dia em que começamos a ser “tratados” como animais, pior do que certos animais. 
Como dizia o Quintela, - o meu cão de certeza absoluta que se recusava a comer o que nós comemos.

Durante anos, muitos anos, de 1961 a 1974, foi assim que os “salvadores” do império foram tratados. No regresso, em Setembro de 1969, já existia um refeitório, mesas corridas, bancos corridos.
Imaginam o que era comer naquele refeitório, quando o mar estava alterado, quando um dos nossos companheiros vomitava, ou quando os pratos vaziam um vai e vem, entre uma ponta e a outra da mesa. 

No regresso, foi mais fácil a nossa viagem, sabíamos que o inferno acabaria no momento em que o Niassa, tocasse um caís qualquer de Lisboa. 
Conto porque vivi e não porque me contaram. 
Imaginem que eu solicitava a todos os meus companheiros, a todos aqueles que foram transportados no navio Niassa, que descrevessem, um dia, uma hora, daquela viagem, de certeza absoluta que muitos, ao lerem ou ao ouvirem essas recordações, diriam....não....não....isto é ficção.

Desembarcamos em Lisboa, no dia 12 de Outubro de 1969, juro-vos que durante meses e meses, mantive nas narinas o cheiro dos porões do Niassa. 

Quem ganhou com aquela guerra?
Nós, a chamada tropa “macaca” perdemos. 
Quando é que perdemos a guerra? 
No primeiro dia em que colocamos os pés no primeiro degrau das escadas de acesso a um navio chamado Niassa. 

As altas patentes, os altos mandatários, os Senhores da Guerra, esses, já se preparavam para mais uma comissão, num qualquer território, numa qualquer parcela ultramarina.

É FARTAR VILANAGEM.
Em honra de todos aqueles que morreram em nome da Pátria, sobretudo dos meus companheiros de viagem, que comigo partiram do cais da Fundição e que comigo regressaram, no navio Niassa, a Lisboa, dentro de quatro caixas de pinho.

Para o - Guerra – Amável – Bibiu e Camilo Alves. È em vossa memória que escrevi e que vou divulgando as minha memórias, as nossas recordações. RIP.


França – 12 de Outubro de 1979 ( Dez anos depois da nossa chegada a Lisboa.)