domingo, 23 de agosto de 2020

A Guerra da Memória, por José Nobre

José Nobre

2018/11/23
Nunca Atirei Pedras Aos Cães.
Paris – Sábado 9 de Maio de 1970.
A Guerra da Memória.
Não me esqueci de vocês. 
Vou continuando a escrever estas merdas, não na caserna como era habitual, estendido na cama ou sentado num caixote à sombra de um qualquer Imbondeiro.

Como é que se pode ter saudades desses tempos, confesso que as tenho. 

A memória é uma merda. 

Já não conto os cigarros, já não pergunto quem me empresta um selo, quem me paga uma cerveja. 
Ouço as vozes, as gargalhadas, revejo-os de lágrimas nos olhos, naqueles dias em que não recebíamos a carta que tanto esperávamos, ou quando recebíamos uma fotografia, da mãe, da mulher, de um filho ou da namorada. 

A memória e o tempo. 
Não, não me esqueci de vocês. 
Hoje estou sentado numa qualquer esplanada de um café em Paris. 

É sábado. 
Não tenho o camuflado, nem a G3, nem o cinturão das granadas. 
Onde estávamos faz hoje um ano? 
Não me lembro, talvez em Nangade, ou em Moatize? 

Há poucos dias vivi o 1º de Maio, participei pela primeira vez numa marcha de trabalhadores. 
Lembrei-me de vocês. 
Os gajos que marchavam ao meu lado, não eram os mesmos, não cheiravam a suor, não tinham o camuflado colado ao corpo e no olhar o medo. 
Aqui, os companheiros são outros, gajos que fugiram à tropa, à guerra, ao Salazar e à incerteza de voltarem. 
Vieram a “salto” e fazem-me perguntas. 
Como era? 
Como foi? 
Não sei explicar, contar, ou não o quero fazer. 
Prefiro o silêncio, guardar só para mim o que vivemos. 

Isso, passa com o tempo, dizem-me, como se o tempo que passa fosse um tira-nódoas. 
Olha, uma mulher branca. 
Só víamos negras e pagas. 

Aqui, é a liberdade, é proibido proibir, tenho de me adaptar, recomeçar a viver, sem toques de corneta, sem recolher obrigatório, sem ordens gritadas por um sargento qualquer. 

Vamos jogar à sueca, ou preferem à lerpa? 
Está um calor do caraças, as cervejas da cantina estão quentes, amanhã temos mais uma coluna até Palma, começam a faltar os mantimentos, já não temos café e a farinha para fazer o pão está quase no fim. 
Só arrancamos se não chover, com a chuva a picada fica impraticável, preferimos a fome, a uma emboscada. 

Não, não me esqueci de nada, ainda é cedo para esquecimentos, por vezes acordo de noite e estranho não ouvir o vosso ressonar, sobretudo o do Felgueiras, aquilo não era um ressonar, era um comboio de mercadorias a passar pela caserna. 

Lembram-se das revistas eróticas, aquelas que vinham do Brasil, compradas a peso de ouro. 
Fazíamos uma “vaquinha” e mandámos vir uma ou duas revistas, daquelas que nos ensinavam o que já sabíamos, pouco mais ou menos. 
Circulavam pelas casernas e por vezes quando voltavam, faltavam folhas.

Paris, uma tarde de sol, o frio já passou. 
Café Avenue, Route de la Reine, perto de La Porte de Saint Cloud. 
Vou desenferrujando o meu francês, para isso têm contribuído os amigos portugueses, a malta que fugiu à tropa, esses já têm quatro ou mais anos de cá estarem. 
Passamos as tardes de sábado a jogar bilhar. 

Lembro-me de ter saudades tuas, lembro-me de escrever cartas, hoje escrevo-as mas não são as mesmas. 
Vinte e seis meses e quinze dias, não, não contei as horas, ou contei-as. 
Já não sei se me lembro do cheiro a terra molhada, das trovoadas em Muidumbe, da praia de Palma, do som do batuque, das danças, da marrabenta, e do sabor de uma papaia acabada de ser colhida. 
Não acreditava, quando me diziam que nunca mais esqueceríamos

África, não esqueci, tenho-a colada à pele e por vezes volto sem voltar. 
Escrevo para não me esquecer, sobretudo de vocês.
( Parte 1 )

Racista, eu..., por José Nobre

Nunca Atirei Pedras Aos Cães.

Moçambique- Moatize - Distrito de Tete.

Setembro de 1968.

Chamo a vossa atenção para o facto de esta história ou estória, ser uma ficção, nada mais do que uma história inventada. 

Nunca estive em Moatize e muito menos no Clube Ferroviário.

Ou estive?

O ponto de encontro era sempre no Clube Ferroviário de Moatize.

Uma sala enorme que servia de restaurante, cinema, e onde, de vez em quando, também haviam bailes, 

O Ferroviário, como nós o designávamos, era frequentado por brancos, os residentes em Moatize e a tropa. 

Jovens não haviam, estavam todos a estudar nas grandes cidades, Beira, Nampula e Lourenço Marques. 

Restavam os pais, que na sua grande maioria trabalhavam na mina de carvão. 

Era este o cenário, uma vila pacata sem grandes problemas e onde a tropa não necessitava de andar armada.

Racista, eu?

Os negros só entravam no Ferroviário quando havia cinema e tinham três ou quatro filas de cadeiras reservadas para eles, bem lá no fundo da sala.

Os bilhetes eram mais baratos nas últimas filas, as filas dos negros.

No Ferroviário não existiam "fiados", consumias e pagavas.

Se tinhas dinheiro, ias ao cinema e ao baile, ou então comias uns camarões fritos com piri-piri, se não tinhas dinheiro ficavas à porta.

Cinema ás quartas, sextas e sábados, sobretudo filmes de cowboys, nos quais os índios eram sempre os derrotados.

Num final de tarde,rumamos mais uma vez para o Ferroviário, preparados para comer mais um petisco, na esplanada, beber umas cervejas e ver uma sessão de cinema. 

Mais um filme com índios.

Nessa noite decidimos ir para as cadeiras dos negros, sempre poupávamos "algum", para mais uma cerveja.

Éramos sempre os mesmos, o Carromeu, o Augusto, o Nelson, o Banó e o marroquino, os inseparáveis, 

Aproximam-mo-nos da bilheteira e o Carromeu pediu cinco bilhetes dos mais baratos. 

Breve hesitação do senhor Lopes, (nome fictício), um colono com muitos anos de Moçambique, cinquenta e dois, dizia ele, e que nas horas vagas, trabalhava no Ferroviário.

- Então vocês vão para as filas dos pretos?

- Vamos sim, senhor Lopes. Respondeu o Carromeu.

- Mas isso não fica lá muito bem, nem sei como vai reagir o vosso capitão, quando souber que soldados da companhia dele, foram para as filas dos pretos.

- É mais barato, senhor Branco, e não me lixe os cornos.

- Eu não me chamo Branco, o meu nome é Lopes.

O caldo esteve quase a entornar. 

Por fim lá apareceram os cinco pedaços de papel branco, que serviam de bilhetes

- O senhor é mesmo racista, disse-lhe o Augusto.

- Racista, eu? Respondeu.


Apontamentos - Moatize - Junho de 1968 a Março de 1969

Vivências vividas..., por Vasco Alexandre

Vivências vividas

Por Vasco Alexandre

Decorria o ano de 1969, no norte de Moçambique, naquele Niassa profundo, onde as minas eram mato e onde soprava por vezes aquela brisa fresca proveniente da serra Gessi que tanto nos animava.

Como na altura já era técnico de construção civil, fui incumbido pelo comando do meu batalhão de construir algumas pontes em betão armado, que anteriormente eram feitas com troncos de madeira.

Numa dessas pontes salvo erro sobre o rio Bulize, que ficava sensivelmente a meio caminho entre Macaloge e Unango, montei a segurança como quatro postos de sentinela, dois em cada margem do rio passando a picada ao meio. 

O meu grupo era constituído pelo pelotão de reconhecimento reforçado com o pelotão de morteiros, um operador de rádio, um maqueiro e um cozinheiro.

Como tinha pessoal civil a trabalhar, tinha também um "cipaio", que para quem não sabe era o género da "Gnr" local.

Como a zona onde nos situávamos era considerada bastante perigosa, montei quatro postos de vigilância, dois em cada margem do rio passando a picada pelo meio, tudo era feito com a luz do dia, dei liberdade aos meus homens para atirar em sobre tudo o que mexesse depois do pôr do sol.

Tudo decorria com normalidade, até que um dia quando estávamos a acabar de jantar que era carne quase diariamente, pois caça ali não faltava, grita um sentinela do outro lado do rio, meu furriel vem ali um gajo na picada com os braços no ar a perguntar se tropa dá licença! 

Mato o gajo? 
Eu perguntei vem armado? 
Não vem nu! 
Não faças mal ao homem. 
Entretanto mandei dois elementos ao outro lado do rio buscar o homem.

Quando se aproximou de mim o pivete era tal que a primeira coisa que fiz foi arranjar um pedaço de sabão e mandar o gajo tomar banho sempre sob vigilância apertada, como se impunha. 

Fui buscar um dos meus calções e dei-lhe para vestir, perguntei-lhe o nome, disse chamar-se José António, perguntei se tinha fome, "maningue fome meu furrié".

Mandei um dos operários fazer comida e entretanto fui fazendo as perguntas que se impunham e cheguei à conclusão que não se tratava de um elemento perigoso, mas era minha obrigação mantê-lo sob vigilância e assim procedi até passar a primeira coluna com destino a Macaloge.

Entreguei o homem ao comandante da escolta e nunca mais pensei no caso.

Passados uns bons meses fui fazer uma escolta a Vila Cabral e assim que cheguei fui procurar alojamento na flatt dos sargentos onde havia sempre lugar para mais um, depois de um reconfortante duche eu e o meu camarada Carvalho já vestidos com roupa civil fomos jantar ao Planalto onde se comia uns belíssimos camarões grelhados e também uns bons bifes.

Estávamos a meio do jantar quando um dos empregados de mesa todo bem vestido, com calça preta e camisa branca, com um ar muito alegre e sorridente disse: "meu furrié não conhece amim"?

Não não te conheço! 
Sou José António, eu entregar a meu "furrié" lá no picada do Macaloge, meu "furrié maningue iambone" para José António, eu estar muito contente mesmo, amanhã tens que ir no meu casa, já tem meu mulher e meu filha, tanto insistiu que combinamos encontrar no dia seguinte e lá fomos nós a caminho do aeroporto onde ficava a casa dele, pelo caminho contou-me resumidamente como conseguiu recuperar a família e não se esqueceu de dizer que já tinha uma ginga e só falta "gerera".

A minha grande surpresa foi quando a mulher dele com um ar  cerimonial e ao mesmo tempo de gratidão me entregou um pano dobrado e no seu interior estavam impecavelmente limpos e engomados os meus calções, que eu fiz questão em voltar a oferecer-lhe.

Nota:
Neste texto que é absolutamente verídico, utilizei termos locais que só quem comeu daquele pó vermelho sabe entender.

Furrié....= Furriel
Maningue...= Muito
Iambone...=  Bom
Ginga...=.  Bicicleta
Gerera...=.  Frigorífico