Vivências vividas
Por Vasco Alexandre
Decorria o ano de 1969, no norte de Moçambique, naquele Niassa profundo, onde as minas eram mato e onde soprava por vezes aquela brisa fresca proveniente da serra Gessi que tanto nos animava.
Como na altura já era técnico de construção civil, fui incumbido pelo comando do meu batalhão de construir algumas pontes em betão armado, que anteriormente eram feitas com troncos de madeira.
Numa dessas pontes salvo erro sobre o rio Bulize, que ficava sensivelmente a meio caminho entre Macaloge e Unango, montei a segurança como quatro postos de sentinela, dois em cada margem do rio passando a picada ao meio.
O meu grupo era constituído pelo pelotão de reconhecimento reforçado com o pelotão de morteiros, um operador de rádio, um maqueiro e um cozinheiro.
Como tinha pessoal civil a trabalhar, tinha também um "cipaio", que para quem não sabe era o género da "Gnr" local.
Como a zona onde nos situávamos era considerada bastante perigosa, montei quatro postos de vigilância, dois em cada margem do rio passando a picada pelo meio, tudo era feito com a luz do dia, dei liberdade aos meus homens para atirar em sobre tudo o que mexesse depois do pôr do sol.
Tudo decorria com normalidade, até que um dia quando estávamos a acabar de jantar que era carne quase diariamente, pois caça ali não faltava, grita um sentinela do outro lado do rio, meu furriel vem ali um gajo na picada com os braços no ar a perguntar se tropa dá licença!
Mato o gajo?
Eu perguntei vem armado?
Não vem nu!
Não faças mal ao homem.
Entretanto mandei dois elementos ao outro lado do rio buscar o homem.
Quando se aproximou de mim o pivete era tal que a primeira coisa que fiz foi arranjar um pedaço de sabão e mandar o gajo tomar banho sempre sob vigilância apertada, como se impunha.
Fui buscar um dos meus calções e dei-lhe para vestir, perguntei-lhe o nome, disse chamar-se José António, perguntei se tinha fome, "maningue fome meu furrié".
Mandei um dos operários fazer comida e entretanto fui fazendo as perguntas que se impunham e cheguei à conclusão que não se tratava de um elemento perigoso, mas era minha obrigação mantê-lo sob vigilância e assim procedi até passar a primeira coluna com destino a Macaloge.
Entreguei o homem ao comandante da escolta e nunca mais pensei no caso.
Passados uns bons meses fui fazer uma escolta a Vila Cabral e assim que cheguei fui procurar alojamento na flatt dos sargentos onde havia sempre lugar para mais um, depois de um reconfortante duche eu e o meu camarada Carvalho já vestidos com roupa civil fomos jantar ao Planalto onde se comia uns belíssimos camarões grelhados e também uns bons bifes.
Estávamos a meio do jantar quando um dos empregados de mesa todo bem vestido, com calça preta e camisa branca, com um ar muito alegre e sorridente disse: "meu furrié não conhece amim"?
Não não te conheço!
Sou José António, eu entregar a meu "furrié" lá no picada do Macaloge, meu "furrié maningue iambone" para José António, eu estar muito contente mesmo, amanhã tens que ir no meu casa, já tem meu mulher e meu filha, tanto insistiu que combinamos encontrar no dia seguinte e lá fomos nós a caminho do aeroporto onde ficava a casa dele, pelo caminho contou-me resumidamente como conseguiu recuperar a família e não se esqueceu de dizer que já tinha uma ginga e só falta "gerera".
A minha grande surpresa foi quando a mulher dele com um ar cerimonial e ao mesmo tempo de gratidão me entregou um pano dobrado e no seu interior estavam impecavelmente limpos e engomados os meus calções, que eu fiz questão em voltar a oferecer-lhe.
Nota:
Neste texto que é absolutamente verídico, utilizei termos locais que só quem comeu daquele pó vermelho sabe entender.
Furrié....= Furriel
Maningue...= Muito
Iambone...= Bom
Ginga...=. Bicicleta
Gerera...=. Frigorífico
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