domingo, 23 de agosto de 2020

Racista, eu..., por José Nobre

Nunca Atirei Pedras Aos Cães.

Moçambique- Moatize - Distrito de Tete.

Setembro de 1968.

Chamo a vossa atenção para o facto de esta história ou estória, ser uma ficção, nada mais do que uma história inventada. 

Nunca estive em Moatize e muito menos no Clube Ferroviário.

Ou estive?

O ponto de encontro era sempre no Clube Ferroviário de Moatize.

Uma sala enorme que servia de restaurante, cinema, e onde, de vez em quando, também haviam bailes, 

O Ferroviário, como nós o designávamos, era frequentado por brancos, os residentes em Moatize e a tropa. 

Jovens não haviam, estavam todos a estudar nas grandes cidades, Beira, Nampula e Lourenço Marques. 

Restavam os pais, que na sua grande maioria trabalhavam na mina de carvão. 

Era este o cenário, uma vila pacata sem grandes problemas e onde a tropa não necessitava de andar armada.

Racista, eu?

Os negros só entravam no Ferroviário quando havia cinema e tinham três ou quatro filas de cadeiras reservadas para eles, bem lá no fundo da sala.

Os bilhetes eram mais baratos nas últimas filas, as filas dos negros.

No Ferroviário não existiam "fiados", consumias e pagavas.

Se tinhas dinheiro, ias ao cinema e ao baile, ou então comias uns camarões fritos com piri-piri, se não tinhas dinheiro ficavas à porta.

Cinema ás quartas, sextas e sábados, sobretudo filmes de cowboys, nos quais os índios eram sempre os derrotados.

Num final de tarde,rumamos mais uma vez para o Ferroviário, preparados para comer mais um petisco, na esplanada, beber umas cervejas e ver uma sessão de cinema. 

Mais um filme com índios.

Nessa noite decidimos ir para as cadeiras dos negros, sempre poupávamos "algum", para mais uma cerveja.

Éramos sempre os mesmos, o Carromeu, o Augusto, o Nelson, o Banó e o marroquino, os inseparáveis, 

Aproximam-mo-nos da bilheteira e o Carromeu pediu cinco bilhetes dos mais baratos. 

Breve hesitação do senhor Lopes, (nome fictício), um colono com muitos anos de Moçambique, cinquenta e dois, dizia ele, e que nas horas vagas, trabalhava no Ferroviário.

- Então vocês vão para as filas dos pretos?

- Vamos sim, senhor Lopes. Respondeu o Carromeu.

- Mas isso não fica lá muito bem, nem sei como vai reagir o vosso capitão, quando souber que soldados da companhia dele, foram para as filas dos pretos.

- É mais barato, senhor Branco, e não me lixe os cornos.

- Eu não me chamo Branco, o meu nome é Lopes.

O caldo esteve quase a entornar. 

Por fim lá apareceram os cinco pedaços de papel branco, que serviam de bilhetes

- O senhor é mesmo racista, disse-lhe o Augusto.

- Racista, eu? Respondeu.


Apontamentos - Moatize - Junho de 1968 a Março de 1969

Sem comentários:

Enviar um comentário