Nunca Atirei Pedras Aos Cães.
Paris – Sábado 9 de Maio de 1970.
A Guerra da Memória.
Não me esqueci de vocês.
Vou continuando a escrever estas merdas, não na caserna como era habitual, estendido na cama ou sentado num caixote à sombra de um qualquer Imbondeiro.
Como é que se pode ter saudades desses tempos, confesso que as tenho.
A memória é uma merda.
Já não conto os cigarros, já não pergunto quem me empresta um selo, quem me paga uma cerveja.
Ouço as vozes, as gargalhadas, revejo-os de lágrimas nos olhos, naqueles dias em que não recebíamos a carta que tanto esperávamos, ou quando recebíamos uma fotografia, da mãe, da mulher, de um filho ou da namorada.
A memória e o tempo.
Não, não me esqueci de vocês.
Hoje estou sentado numa qualquer esplanada de um café em Paris.
É sábado.
Não tenho o camuflado, nem a G3, nem o cinturão das granadas.
Onde estávamos faz hoje um ano?
Não me lembro, talvez em Nangade, ou em Moatize?
Há poucos dias vivi o 1º de Maio, participei pela primeira vez numa marcha de trabalhadores.
Lembrei-me de vocês.
Os gajos que marchavam ao meu lado, não eram os mesmos, não cheiravam a suor, não tinham o camuflado colado ao corpo e no olhar o medo.
Aqui, os companheiros são outros, gajos que fugiram à tropa, à guerra, ao Salazar e à incerteza de voltarem.
Vieram a “salto” e fazem-me perguntas.
Como era?
Como foi?
Não sei explicar, contar, ou não o quero fazer.
Prefiro o silêncio, guardar só para mim o que vivemos.
Isso, passa com o tempo, dizem-me, como se o tempo que passa fosse um tira-nódoas.
Olha, uma mulher branca.
Só víamos negras e pagas.
Aqui, é a liberdade, é proibido proibir, tenho de me adaptar, recomeçar a viver, sem toques de corneta, sem recolher obrigatório, sem ordens gritadas por um sargento qualquer.
Vamos jogar à sueca, ou preferem à lerpa?
Está um calor do caraças, as cervejas da cantina estão quentes, amanhã temos mais uma coluna até Palma, começam a faltar os mantimentos, já não temos café e a farinha para fazer o pão está quase no fim.
Só arrancamos se não chover, com a chuva a picada fica impraticável, preferimos a fome, a uma emboscada.
Não, não me esqueci de nada, ainda é cedo para esquecimentos, por vezes acordo de noite e estranho não ouvir o vosso ressonar, sobretudo o do Felgueiras, aquilo não era um ressonar, era um comboio de mercadorias a passar pela caserna.
Lembram-se das revistas eróticas, aquelas que vinham do Brasil, compradas a peso de ouro.
Fazíamos uma “vaquinha” e mandámos vir uma ou duas revistas, daquelas que nos ensinavam o que já sabíamos, pouco mais ou menos.
Circulavam pelas casernas e por vezes quando voltavam, faltavam folhas.
Paris, uma tarde de sol, o frio já passou.
Café Avenue, Route de la Reine, perto de La Porte de Saint Cloud.
Vou desenferrujando o meu francês, para isso têm contribuído os amigos portugueses, a malta que fugiu à tropa, esses já têm quatro ou mais anos de cá estarem.
Passamos as tardes de sábado a jogar bilhar.
Lembro-me de ter saudades tuas, lembro-me de escrever cartas, hoje escrevo-as mas não são as mesmas.
Vinte e seis meses e quinze dias, não, não contei as horas, ou contei-as.
Já não sei se me lembro do cheiro a terra molhada, das trovoadas em Muidumbe, da praia de Palma, do som do batuque, das danças, da marrabenta, e do sabor de uma papaia acabada de ser colhida.
Não acreditava, quando me diziam que nunca mais esqueceríamos
África, não esqueci, tenho-a colada à pele e por vezes volto sem voltar.
Escrevo para não me esquecer, sobretudo de vocês.
( Parte 1 )
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