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Luís Leote (luismpleote@sapo.pt) | |
Em: | sexta-feira, 7 de Março de 2014 12:14:48 |
DESOBEDIÊNCIA ACERTADA
Era mais uma missão da terceira semana em ações de reconhecimento e limpeza na zona operacional de Napota, uns quilómetros a Sul de Mutamba dos Macondes, onde foram recolhidos cerca de trezentos e vinte habitantes e aprisionados sete guerrilheiros.
Juntamente com meia dúzia de armas, toda aquela gente foi entregue aos cuidados da companhia de Nangade.
Parecia uma operação rotineira, por entre os trilhos usados pelos guerrilheiros da Frelimo, para reabastecerem as suas bases do vale de Miteda até Nangololo.
Por coincidência ou por perícia, até agora, nunca houve recontros armados nem sinais de emboscadas, apesar de termos avistado duas patrulhas na recolha de água do mesmo poço, único num raio de dez quilómetros, onde também nos servimos da preciosa água.
Desta vez, assaltámos as instalações de uma antiga serração de madeiras transformada em base de apoio logístico e administrativo aos homens da Frelimo.
Bem escondida dentro da mata, foi detetada por acaso.
Depois de tomados os três trilhos de acesso e uma picada obstruída com várias árvores derrubadas, as três secções do primeiro pelotão tomaram o controlo das entradas e saídas, evitando a fuga dos "frelimos".
O pessoal do terceiro pelotão tomou de assalto todas as instalações e palhotas, e aprisionaram um secretário e três guerrilheiros, bem como nove habitantes de apoio logístico.
Não foi disparado um único tiro, porque todos eles levantaram os braços a pedir clemência!
Estavam muito assustados pela surpresa do assalto.
Foram recolhidas duas armas automáticas e alguns utensílios de trabalho nas machambas.
Sem perder tempo, fez-se um interrogatório preliminar aos quatro prisioneiros mais importantes, mas estes mostraram pouca vontade de colaborar, apesar da ameaça do cinturão do cabo Martins.
Só o secretário, que não era maconde, deu algumas informações que permitiram encontrar mais dois pequenos redutos de apoio logístico à guerrilha.
Por acordo entre os comandantes de pelotão, os sessenta e quatro combatentes dos dois pelotões dividiram-se em três grupos de combate autónomos, ficando dois deles no terreno para procurar e desmantelar os ditos acampamentos da Frelimo, enquanto uma secção e mais três equipas do primeiro pelotão conduziam os prisioneiros e o respectivo material para o nosso acampamento em Napota.
Aproximava-se o meio-dia quando partimos para as definidas missões.
O meu grupo, constituído por vinte e sete caçadores pára-quedistas, avançou para um dos objectivos indicados pelo prisioneiro, localizado a norte da ribeira de Munga, cortando o caminho por entre brenhas e capim, de modo a evitar possíveis emboscadas nos trilhos.
Na proximidade das sanzalas foi feito o ponto da situação e logo passámos ao assalto…
Ficámos surpreendidos com o resultado da nossa ação: mais três guerrilheiros, seis mulheres e cinco homens idosos foram aprisionados.
Os guerrilheiros não tinham as armas junto deles, pois estavam a reabastecer-se de alimentos, e não ofereceram resistência.
Até já duvidávamos de tanta facilidade numa zona considerada perigosa para as nossas tropas.
O alferes estava radiante com a sua primeira missão como responsável pela orgânica do assalto ao acampamento inimigo!
Essa alegria depressa esmoreceu, porque a inexperiência aliada à excessiva confiança só pode redundar em fracasso, quando não em fatalidade… e não demorou uma hora para acontecer o inesperado desenlace; sem nos darmos conta, ficámos encurralados e à mercê dos tiros das armas inimigas.
O sol, que atestava forte em cima das nossas cabeças e a sede, sempre difícil de controlar, retiravam alguma lucidez ao comportamento do pessoal.
Com a ansiedade a aconselhar o percurso mais arborizado e mais curto em direção ao nosso acampamento provisório, seguimos um trilho que nos levou até ao vale com bastante vegetação.
Alguns elementos da equipa do cabo Santos, que seguiam na frente da coluna, perceberam que os trilhos estavam muito desgastados pelo movimento de pessoas.
O sargento Botelho preveniu o seu pessoal para as possíveis consequências, por entrarmos no vale sem grandes condições de visibilidade, onde os guerrilheiros poderiam surpreender e atingir a nossa tropa.
A estranha passividade demonstrada depois da destruição dos seus redutos começava a inquietar parte do grupo.
Os prisioneiros que nos acompanhavam, atados com cordas, também davam indícios de agitação.
Entre cada três dos nossos combatentes seguiam dois inimigos aprisionados – situação que nos causava algum desconforto e receio.
Mas tudo parecia demasiado fácil e normal naquela caravana.
No fundo do vale, a vegetação do lado direito era densa e verde e com árvores bem entroncadas, mas, do lado esquerdo só havia arbustos e capim entremeado por uma brenha impenetrável… e foi daí que saíram os primeiros tiros de armas inimigas.
Em poucos segundos instalou-se a confusão entre os prisioneiros, que tentavam escapulir-se.
Enquanto os soldados se abrigavam das balas inimigas, os três guerrilheiros tentaram a fuga por entre as árvores da encosta do lado direito.
As folhas que iam caindo sobre as nossas cabeças já nos diziam por onde passavam as balas.
A equipa do cabo Santos tomou posição para se defender de eventuais guerrilheiros que viessem da frente.
Outros abrigaram-se junto das pedras em forma de muro que estavam no lado direito do trilho.
Precipitadamente, o alferes Carmelo deu ordens a uma das equipas do sargento Botelho para perseguir os três foragidos que se escapavam mata dentro.
Apercebendo-se do efeito do impacto das balas nos troncos das árvores e vendo a poeira que faziam ali mesmo na sua frente, por onde o alferes ordenava a perseguição aos foragidos, o sargento Botelho contrariou aquela ordem, indicando aos seus homens para flagelarem os fugitivos mas, continuando a proteger-se junto das pedras.
Olhando o alferes de frente, protestou energicamente contra uma ordem inadequada e que poderia ter como resultado a morte de alguns dos seus comandados.
Não fossem alguns tiros das armas, tudo parecia serenar quando o alferes virou a AR-10 na direção do sargento Botelho e, numa posição ameaçadora, sentenciou:
- Aqui, quem manda sou eu e quem desobedecer leva já um tiro!...
Por instantes, os que presenciavam a caricata cena temeram, que o alferes cometesse alguma loucura, levando a situação para um desfecho dramático, uma vez que denotava um total descontrolo emocional – já não bastava a crítica posição no terreno, aparecia agora mais um problema de pontos de vista antagónicos, quando estavam em perigo mais de duas dezenas de combatentes.
O sargento Botelho, já veterano da guerra em Angola, embora em apuros, manteve a calma, deixou-se escorregar no capim e encurtar a distância que o separava do alferes. Com um golpe certeiro e eficaz, bateu com o coice da sua arma na mão direita do alferes, atirando-lhe a AR-10 por terra.
Num ápice, enquanto o sargento Botelho deitou a mão à arma, dois dos soldados mais próximos manietaram o alferes que, ao ver-se impossibilitado de reagir, proferiu algumas palavras de ameaça, mas submeteu-se à força dos músculos.
Enquanto isso, as armas inimigas não paravam de matraquear e os três turras deram à perna… sem ninguém lhes por mais a vista em cima.
Resoluto e apoiado pelos homens do pelotão, o sargento Botelho ordenou ao cabo Santos que atasse uma corda às mãos do alferes Carmelo e que tomasse conta dele.
Deu instruções para as equipas da retaguarda tentarem subir ao morro e flagelar os guerrilheiros.
O sargento Figas concordou com o Botelho nessa tentativa para desalojar os frelimos daquela posição de domínio sobre o terreno, por ser a única forma de sairmos dali sem sofrer baixas.
Tantos e inesperados acontecimentos ocorridos em poucos minutos, obrigaram a uma pausa para organizar a defesa e encontrar maneira de sair daquele buraco sob o fogo inimigo.
Rastejando mais para trás, o sargento Figas, com os seus, incumbiu-se de desalojar os guerrilheiros, os quais se viram obrigados a mudar de posição e tratar de se defenderem.
Esta manobra deu oportunidade para a equipa do cabo Santos avançar umas vantajosas dezenas de metros e tomar posição em local propício para atirar sobre o morro onde estavam os guerrilheiros.
Assim, num esforço conjugado entre os homens da frente e os da retaguarda, a coluna pode reorganizar-se e continuar a marcha até ao acampamento.
Cabisbaixo e despido do poder de comando, o alferes não perdeu a postura perante a arrogância do resoluto sargento Botelho.
Mas, em tom de aviso, sempre foi dizendo que a desobediência é caso muito grave, sujeito a “conselho de guerra”, quando cometida em frente ao inimigo.
Durante as três horas que demorou o resto do percurso, ninguém se preocupou com as consequências do desentendimento entre aqueles dois chefes, apesar das palavras ameaçadoras do alferes, porque o sargento Botelho apenas concentrava a atenção na forma de conduzir o grupo de homens até ao acampamento de Napota.
Para grande parte daqueles combatentes, este episódio só veio atestar a filosofia do sargento perante esta guerra:
"Quando embrenhados na mata de armas na mão e sujeitos aos perigos da guerra, só podemos contar connosco, como tal, a nossa sobrevivência depende das nossas decisões e determinação em as concretizar e os nossos atos dependem apenas da nossa consciência, porque estamos longe dos mandantes e dos governantes.”
A meio da tarde, entrámos no reduto onde as palhotas servem de arrecadação dos alimentos e do material de apoio, as Berliets aguardavam o regresso a Mueda, as trincheiras e abrigos subterrâneos conservavam alguma frescura para acolher os combatentes cansados.
Ciente das responsabilidades que assumiu, o sargento Botelho mandou desatar as mãos do alferes e acompanhou-o até junto do capitão a quem deu conhecimento provisório do ocorrido.
O resto do pessoal tratou das formalidades habituais quanto à recolha de população, entregando-a aos cuidados da guarda à palhota onde os mesmos pernoitam até serem entregues no quartel de Nangade.
O enfermeiro inteirou-se dessas pessoas e tratou de curar algumas feridas bem visíveis nos pés dos mais velhos, por sinal, estavam a sofrer com a lepra que lhes ruía as carnes.
O comandante da companhia reuniu todos os oficiais e sargentos dentro da palhota do posto de rádio. De semblante carregado, quis saber pormenores e analisar as consequências da desobediência do sargento Botelho.
Cá fora, as praças rondavam o local da reunião e mostravam a sua inquietação por temerem que o sargento Botelho fosse alvo de alguma punição.
Pois, estavam cientes de que aquele ato de desobediência foi providencial para evitar que grande parte dos homens protagonistas daquela missão poderiam não regressar com vida.
Agora, mais a frio, compreendiam que a situação era verdadeiramente perigosa.
Foram poucos os que quiseram pronunciar-se sobre assunto tão melindroso.
E todos aceitaram uma acareação entre o sargento Botelho e o alferes Carmelo, os dois protagonistas daquele fato inadequado dentro da hierarquia duma tropa especial.
Por sugestão do capitão e com a concordância dos presentes, não haveria qualquer ação disciplinar e tudo ficaria encerrado ali mesmo.
Tal decisão foi bem aceite entre o restante pessoal da companhia.
As missões continuaram nos dias seguintes, mas outras situações bem mais dramáticas e com perdas de vidas se abateram sobre aquele grupo de homens que apenas queriam cumprir um dever que lhes impunham.
Nem sempre entendemos as razões que a desobediência desconhece.
JOAQUIM COELHO
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