O Ataque ao Lunho ( 23/09/71)
(Tal como eu o “vi” e guardo na memória)
Tínhamos acabado de chegar ao Niassa, a 12 de Agosto/71, “chequinhas” de todo.
Checa era a palavra que, em Moçambique, designava o Maçarico, o novato, o recém-chegado.
Ficou a CCS em Metangula, verdadeira estância turística, enquanto as Companhias 3393 e 3392 foram para Nova Coimbra e Lunho, respetivamente.
Estávamos no período de adaptação à guerra propriamente dita.
Até ali tudo não passava de teoria, agora as coisas eram mesmo a sério e muito diferentes de tudo o que se tinha aprendido durante os meses de “prática” no pacífico rectângulo europeu.
Agora eram mesmo as nossas vidas que se encontravam em jogo.
Os conselhos dos “velhinhos” eram escutados atentamente e cada um procurava tirar destes conselhos o maior partido possível.
Velhinhos eram os militares que nós, Checas, íamos render nas respectivas missões, e que já tinham muitos meses de Ultramar e, por isso mesmo muita experiência.
Ouvi-los era um acto de inteligência e que apenas nos poderia trazer alguma vantagem.
Casos houve, muitos, em que o desprezo por estes conselhos teve consequências bem trágicas.
Ainda não tinha decorrido um mês e o Major Z, que tinha no Lunho um primo, o Furriel S, decidiu dar repouso aos operacionais do Lunho.
Criou um sistema de rotação em que um pelotão do Lunho era substituído por um pelotão da CCS.
Na CCS apenas havia um Pelotão de Reconhecimento (Pel.Rec.) e foi a este que tocou a sorte de substituir o pelotão do Lunho.
Claro que a ideia caiu na CCS como uma bomba.
A CCS era conhecida, na gíria militar, como os heróis do arame farpado.
Estávamos todos convencidos que a acção militar se limitaria a fazer as picagens nas deslocações entre as nossas companhias – Nova Coimbra e Lunho.
Puro engano, em menos de um mês aí vai um pelotão para o pior buraco do Batalhão e um dos piores do Niassa – o famoso Lunho.
Quando a ordem surgiu não faltaram manifestações de desagrado.
Nenhum dos visados gostou da ideia, bem pelo contrário.
Maldita sorte!
Este desagrado era potenciado pela intenção que estava por trás desta decisão.
Todos sabíamos que a verdadeira finalidade era dar algum privilégio ao primo do major.
Como era possível que ainda não tivesse decorrido um mês e já houvesse necessidade de dar descanso a pelotões do Lunho.
Não tinha decorrido qualquer acto de guerra que justificasse tal decisão.
A indignação ia bem para além dos directamente visados nesta artimanha.
Mas, a tropa é assim mesmo, manda quem pode e obedece quem deve.
Claro que o pelotão do Lunho que foi rendido era o do primo do Major.
Lá foram para o Lunho os heróis do arame farpado, bem a contra gosto.
No famoso dia 23, à noite, a vida corria como de costume.
Na messe de Sargentos e Oficiais celebrava-se o nascimento de um filho do 1º Sargento Jesus (de Chaves) e a noite foi de farra!
A comida mas, principalmente a bebida, foi até dizer, chega.
Quando a festa acabou poucos seriam, ou nenhuns, os oficiais e sargentos que estivessem sóbrios.
Tinham comido bem e bebido ainda melhor.
Foi uma bebedeira quase geral.
Aos tropeções, acabada a festa, dirigiram-se para as camas em que a maior parte caiu sem ter já tino para se despir.
Adormeceram como anjos – anjos trôpegos, claro..
Nas guaritas as sentinelas iam olhando para o vazio sonolentamente.
Nessa noite o pessoal de serviço era todo da CCS e uma das sentinelas era o Miraldo.
De olhos arregalados perscrutava a escuridão do mato.
Qual sono qual carapuça!
Estava bem atento, o Lunho não permitia descuidos, só a sua fama era suficiente para despertar o mais sonolento dos soldados.
Ainda por cima estávamos muito próximos do aniversário da Frelimo.
Face à aproximação desta data as ordens eram mesmo de aumentar o cuidado e reforçar até as vigias.
A Frelimo costumava, no seu aniversário, efectuar sempre alguma acção que pudesse dar algum estrilho na imprensa, nacional e internacional.
O problema era que nunca se sabia onde iria ser efectuada essa acção pelo que todos os quartéis estavam de sobreaviso e prevenção para esta eventualidade.
Entre a meia-noite e a uma da nanhã, o Miraldo que, juntamente com o Barbeiro e o Carvalho, se encontrava de sentinela num posto avançado, constituído por dois bidões de areia e troncos atravessados, começou a ver, ao longe, na direcção do rio Lunho, umas luzes a movimentarem-se.
Estas luzes apareciam e desapareciam por trás dos arbustos, tornando-se, assim, intermitentes.
Alertou os colegas e com a HK21, que havia naquele posto, fez alguns disparos na direcção das luzes.
Estes disparos, efectuados tiro a tiro sem que houvesse qualquer resposta, alertaram o pessoal e não tardou que aparecesse o Capitão Lapa e o Furriel Martins, da CCS, para averiguarem a razão dos mesmos.
Informado do avistamento das luzes o Capitão Lapa deduziu tratar-se de pirilampos e quase repreendeu o Miraldo por ter disparado.
- Vocês são checas e estão com medo.
Ainda não estão habituados a isto.
Checas éramos todos, queria ele dizer que, por se tratar de pessoal da CCS, reagiam como “heróis do arame farpado” sem o calo dos soldados do Lunho.
Dito isto, e como tudo tinha um aspecto normal, retirou-se juntamente com o Furriel.
O Miraldo, não muito convencido, continuou a fazer a sua vigia concentrando a sua atenção na direcção das luzes que tinha visto.
Perto das três da Manhã as luzes voltaram a aparecer mas desta vez já muito próximas da Companhia de Engenharia e, além das luzes, conseguiu vislumbrar também alguns vultos.
Não, não havia dúvidas, não eram pirilampos, andava por ali alguém e este alguém apenas podiam ser guerrilheiros (Turras) sem boas intenções.
Alerta os colegas e com a HK21 começa a fazer fogo de rajada na direcção dos vultos e luzes.
Do meio do mato respondem as Kalashnikov em direção ao quartel.
Das outras guaritas, alertados pelos tiros, começaram também a disparar e tornou-se infernal o barulho que este tiroteio provocava.
Não tardou nada e todos os postos de sentinela disparavam desenfreadamente no sentido das luzes que os tiros das Kalashnikov rasgavam na escuridão.
No silêncio da noite aqueles disparos soaram como trovões.
O pessoal que dormia nas casernas acordou sobressaltado sem se aperceber bem do que se passava. Mas foi um instante!
Apressadamente pegaram nas armas e cartucheiras e, muitos ainda meio despidos, correram para os abrigos que previamente lhes tinham sido atribuídos onde foram engrossar o terrível trovão do tiroteio.
No meio deste barulho infernal mas sobrepondo-se-lhe ouviu-se uma formidável explosão - A ponte do Lunho (Ex-Libris daquele lugar) acabava de ir pelos ares.
Os sargentos e oficiais ainda “anestesiados” acordaram atarantados, sem saber a razão dos disparos.
A forte explosão chamou-os num ápice à realidade.
Era um ataque não havia dúvida.
Pegaram nas armas e cartucheiras e toca a andar em direcção aos abrigos.
O tiroteio era cada vez mais intenso com a chegada do pessoal vindo das camaratas.
Ainda não tinham chegado todos aos abrigos quando começam a cair bombas de armas pesadas.
Uma perto da messe mas do lado de fora do quartel, outra perto da caserna e outra perto das transmissões e parque auto mas também do lado de fora do quartel. Embora perto nenhuma acertou nos alvos mas continuavam a cair cada vez mais perto, umas ao lado e outras dentro do quartel.
O tiroteio aumentava e distinguiam-se perfeitamente os disparos das G3, das Kalashnikov e das metralhadoras pesadas que se encontravam nas guaritas.
A estes disparos sobrepunham-se as granadas das armas pesadas que iam caindo cadenciadamente cada vez mais perto dos respectivos alvos.
O Tigre, um soldado negro, apontador de morteiro, instala o morteiro e começa a ripostar com morteiradas na direcção em que lhe parecia estarem colocadas as armas pesadas dos guerrilheiros. Segundo se dizia na altura, o Tigre chegava a colocar no ar 10 granadas de morteiro antes que a primeira rebentasse.
Quando a primeira caía seguia-se uma cadência impressionante de morteiradas.
Para além da cadência o Tigre foi de uma felicidade extrema pois passado pouco tempo deixaram de se ouvir as bombas das armas pesadas.
Restava apenas o tiroteio das guaritas e abrigos e resposta das Kalashnikov.
A noite foi avançando e o dia começou a dar os primeiros sinais de querer nascer.
As munições começavam a escassear e muitos tinham mesmo gasto todas as cartucheiras de que dispunham.
Os guerrilheiros, face ao silêncio das suas armas pesadas e perante a resposta firme do quartel vendo gorados os seus intentos procuraram embrenhar-se no mato e pôr-se a salvo.
O pessoal do quartel, agora mais encorajado ao pressentir a fuga dos guerrilheiros, redobrou o tiroteio e este só parou quando deixaram de ouvir as Kalashnikov.
Pouco a pouco foi-se estabelecendo o silêncio e, com os primeiros alvores da manhã, todos os olhos procuravam indícios da presença dos guerrilheiros.
Nada!
Todos se tinham posto a salvo no meio do mato, o seu elemento natural.
Tudo isto não durou mais que uma hora mas foi, sem dúvida, a hora mais comprida da vida de quantos a viveram.
Foi feita uma verificação geral e concluiu-se que não havia feridos da nossa parte. Tomaram-se medidas para prevenir novos ataques. Com a chegada do dia e o silêncio instalado começaram, finalmente, a bater mais devagar os corações daqueles bravos soldados que, apesar da falta de experiência deram uma prova enorme de coragem e valor. Tinham ganho a primeira batalha das suas vidas e pelas suas vidas.
Numa inspecção mais pormenorizada verificaram-se muitas paredes com estilhaços das granadas das armas pesadas e alguns estragos de material mas nada de muita monta.
Feita a verificação no exterior viram-se muitos rastos de sangue.
A ponte, a famosa ponte do Lunho, apresentava um rombo que a tornava intransitável.
Um dos tramos da ponte tinha voado e repousava a uns bons metros de distância.
Concluiu-se depois que o ataque tinha sido planeado ao pormenor, da seguinte forma:
- Para os lados do Chissindo, sobranceiro ao vale em que se encontrava o quartel, os guerrilheiros tinham instalado três armas pesadas, dois obuses e um canhão sem recuo (ou dois canhões sem recuo e um obus) dirigindo-as para os pontos estratégicos: Messe de sargentos e oficiais e transmissões, que sencontravam perto umas das outras; casernas dos soldados; parque de viaturas.
Estas armas foram colocadas durante o dia e direccionadas com todo o cuidado;
- Durante a noite os guerrilheiros procuraram envolver o quartel tentando ocupar posições que lhe dessem alguma vantagem sobre o quartel;
- O ataque seria despoletado pelas armas pesadas estando já colocados no terreno os guerrilheiros que após os primeiros rebentamentos apanhariam, de surpresa, os nossos soldados a sair das casernas em direcção aos abrigos.
A acção destinava-se mesmo a tomar o quartel do Lunho ou, pelo menos, causar elevados danos.
Foi o caso da ponte que era a menina dos olhos da companhia e, constituiu, por si só, um pesado revés. .
Veio a saber-se mais tarde que naquele ataque foram mortos cinco guerrilheiros e dois vieram a morrer em função dos ferimentos sofridos.
Também no sítio onde estiveram montadas as armas pesadas se vieram a verificar muitos rastos de sangue.
O Tigre acertou em cheio!
E agora fica a pergunta que me não sai da cabeça desde aquela data: O que aconteceria se não tem havido a “providencial” substituição do pelotão do primo do Major por um pelotão da CCS.
Qual teria sido o desfecho?
Não quero tirar ilações ilegítimas mas esta pergunta nunca mais me abandonou e não sou capaz de encontrar uma resposta.
Teria sido igual o desfecho se não se tivessem sucedido estes “acasos”?
O ataque ao Lunho foi amplamente divulgado, pela sua envergadura, e pelo facto de ter sido sofrido por uma companhia que era “Checa” naquelas paragens.
A tal ponto que este ataque passou a figurar, de autor que desconheço, no famoso Cancioneiro do Niassa.
Nesta canção é evidenciada, sobretudo, a aflição dos “Checas” perante um tal ataque e a falta de munições que a determinado ponto se começou a sentir.
Mas a verdade é que, embora Checas, portaram-se como veteranos e repeliram um dos piores ataques (para o batalhão foi mesmo o pior) que no Niassa aconteceram.
Este ataque ficou marcado de forma indelével na mente de quantos o viveram e é, ainda hoje, lembrado como um dos pontos mais significativos na passagem da juventude para a idade adulta.
Foi para muitos a verdadeira perda da inocência.
A partir daquele dia a vida nunca mais foi o que era.
Este texto baseia-se nos relatos que ouvi directamente dos intervenientes da CCS, neste ataque.
Amadeu Carvalho
P.S.
(Naquele mesmo local, alguns anos antes, em 31de Maio de 1965, foi alvo de uma acção semelhante a famosa Companhia 7 de Espadas – C. Cavª. 754 - de que fazia parte o, ainda mais famoso, ciclista Joaquim Agostinho.
Nesse dia tiveram 6 baixas e mais uma da Companhia de Nova Coimbra que foi em seu auxílio.
A Companhia de Joaquim Agostinho foi uma das que mais baixas sofreu naquela zona, a tal ponto que teve de ser evacuada para a Beira pois foi considerada inoperacional.
Quando uma companhia sofria muitas baixas era considerada psicologicamente incapaz de continuar no teatro de guerra.
Nesta altura ainda não existia o quartel do Lunho e as tropas ali estacionadas encontravam-se alojadas num bivaque (“aquartelamento” feito de tendas de campanha).
(Este apontamento referente à Cª 7 de Espadas foi feito com a colaboração de Eduardo Maria Nunes, do Batalhão de Caçadores 598, um dos que foi em auxílio de Joaquim Agostinho, no dia 31 de Maio de 1965.
O meu agradecimento.
Checa era a palavra que, em Moçambique, designava o Maçarico, o novato, o recém-chegado.
Ficou a CCS em Metangula, verdadeira estância turística, enquanto as Companhias 3393 e 3392 foram para Nova Coimbra e Lunho, respetivamente.
Estávamos no período de adaptação à guerra propriamente dita.
Até ali tudo não passava de teoria, agora as coisas eram mesmo a sério e muito diferentes de tudo o que se tinha aprendido durante os meses de “prática” no pacífico rectângulo europeu.
Agora eram mesmo as nossas vidas que se encontravam em jogo.
Os conselhos dos “velhinhos” eram escutados atentamente e cada um procurava tirar destes conselhos o maior partido possível.
Velhinhos eram os militares que nós, Checas, íamos render nas respectivas missões, e que já tinham muitos meses de Ultramar e, por isso mesmo muita experiência.
Ouvi-los era um acto de inteligência e que apenas nos poderia trazer alguma vantagem.
Casos houve, muitos, em que o desprezo por estes conselhos teve consequências bem trágicas.
Ainda não tinha decorrido um mês e o Major Z, que tinha no Lunho um primo, o Furriel S, decidiu dar repouso aos operacionais do Lunho.
Criou um sistema de rotação em que um pelotão do Lunho era substituído por um pelotão da CCS.
Na CCS apenas havia um Pelotão de Reconhecimento (Pel.Rec.) e foi a este que tocou a sorte de substituir o pelotão do Lunho.
Claro que a ideia caiu na CCS como uma bomba.
A CCS era conhecida, na gíria militar, como os heróis do arame farpado.
Estávamos todos convencidos que a acção militar se limitaria a fazer as picagens nas deslocações entre as nossas companhias – Nova Coimbra e Lunho.
Puro engano, em menos de um mês aí vai um pelotão para o pior buraco do Batalhão e um dos piores do Niassa – o famoso Lunho.
Quando a ordem surgiu não faltaram manifestações de desagrado.
Nenhum dos visados gostou da ideia, bem pelo contrário.
Maldita sorte!
Este desagrado era potenciado pela intenção que estava por trás desta decisão.
Todos sabíamos que a verdadeira finalidade era dar algum privilégio ao primo do major.
Como era possível que ainda não tivesse decorrido um mês e já houvesse necessidade de dar descanso a pelotões do Lunho.
Não tinha decorrido qualquer acto de guerra que justificasse tal decisão.
A indignação ia bem para além dos directamente visados nesta artimanha.
Mas, a tropa é assim mesmo, manda quem pode e obedece quem deve.
Claro que o pelotão do Lunho que foi rendido era o do primo do Major.
Lá foram para o Lunho os heróis do arame farpado, bem a contra gosto.
No famoso dia 23, à noite, a vida corria como de costume.
Na messe de Sargentos e Oficiais celebrava-se o nascimento de um filho do 1º Sargento Jesus (de Chaves) e a noite foi de farra!
A comida mas, principalmente a bebida, foi até dizer, chega.
Quando a festa acabou poucos seriam, ou nenhuns, os oficiais e sargentos que estivessem sóbrios.
Tinham comido bem e bebido ainda melhor.
Foi uma bebedeira quase geral.
Aos tropeções, acabada a festa, dirigiram-se para as camas em que a maior parte caiu sem ter já tino para se despir.
Adormeceram como anjos – anjos trôpegos, claro..
Nas guaritas as sentinelas iam olhando para o vazio sonolentamente.
Nessa noite o pessoal de serviço era todo da CCS e uma das sentinelas era o Miraldo.
De olhos arregalados perscrutava a escuridão do mato.
Qual sono qual carapuça!
Estava bem atento, o Lunho não permitia descuidos, só a sua fama era suficiente para despertar o mais sonolento dos soldados.
Ainda por cima estávamos muito próximos do aniversário da Frelimo.
Face à aproximação desta data as ordens eram mesmo de aumentar o cuidado e reforçar até as vigias.
A Frelimo costumava, no seu aniversário, efectuar sempre alguma acção que pudesse dar algum estrilho na imprensa, nacional e internacional.
O problema era que nunca se sabia onde iria ser efectuada essa acção pelo que todos os quartéis estavam de sobreaviso e prevenção para esta eventualidade.
Entre a meia-noite e a uma da nanhã, o Miraldo que, juntamente com o Barbeiro e o Carvalho, se encontrava de sentinela num posto avançado, constituído por dois bidões de areia e troncos atravessados, começou a ver, ao longe, na direcção do rio Lunho, umas luzes a movimentarem-se.
Estas luzes apareciam e desapareciam por trás dos arbustos, tornando-se, assim, intermitentes.
Alertou os colegas e com a HK21, que havia naquele posto, fez alguns disparos na direcção das luzes.
Estes disparos, efectuados tiro a tiro sem que houvesse qualquer resposta, alertaram o pessoal e não tardou que aparecesse o Capitão Lapa e o Furriel Martins, da CCS, para averiguarem a razão dos mesmos.
Informado do avistamento das luzes o Capitão Lapa deduziu tratar-se de pirilampos e quase repreendeu o Miraldo por ter disparado.
- Vocês são checas e estão com medo.
Ainda não estão habituados a isto.
Checas éramos todos, queria ele dizer que, por se tratar de pessoal da CCS, reagiam como “heróis do arame farpado” sem o calo dos soldados do Lunho.
Dito isto, e como tudo tinha um aspecto normal, retirou-se juntamente com o Furriel.
O Miraldo, não muito convencido, continuou a fazer a sua vigia concentrando a sua atenção na direcção das luzes que tinha visto.
Perto das três da Manhã as luzes voltaram a aparecer mas desta vez já muito próximas da Companhia de Engenharia e, além das luzes, conseguiu vislumbrar também alguns vultos.
Não, não havia dúvidas, não eram pirilampos, andava por ali alguém e este alguém apenas podiam ser guerrilheiros (Turras) sem boas intenções.
Alerta os colegas e com a HK21 começa a fazer fogo de rajada na direcção dos vultos e luzes.
Do meio do mato respondem as Kalashnikov em direção ao quartel.
Das outras guaritas, alertados pelos tiros, começaram também a disparar e tornou-se infernal o barulho que este tiroteio provocava.
Não tardou nada e todos os postos de sentinela disparavam desenfreadamente no sentido das luzes que os tiros das Kalashnikov rasgavam na escuridão.
No silêncio da noite aqueles disparos soaram como trovões.
O pessoal que dormia nas casernas acordou sobressaltado sem se aperceber bem do que se passava. Mas foi um instante!
Apressadamente pegaram nas armas e cartucheiras e, muitos ainda meio despidos, correram para os abrigos que previamente lhes tinham sido atribuídos onde foram engrossar o terrível trovão do tiroteio.
No meio deste barulho infernal mas sobrepondo-se-lhe ouviu-se uma formidável explosão - A ponte do Lunho (Ex-Libris daquele lugar) acabava de ir pelos ares.
Os sargentos e oficiais ainda “anestesiados” acordaram atarantados, sem saber a razão dos disparos.
A forte explosão chamou-os num ápice à realidade.
Era um ataque não havia dúvida.
Pegaram nas armas e cartucheiras e toca a andar em direcção aos abrigos.
O tiroteio era cada vez mais intenso com a chegada do pessoal vindo das camaratas.
Ainda não tinham chegado todos aos abrigos quando começam a cair bombas de armas pesadas.
Uma perto da messe mas do lado de fora do quartel, outra perto da caserna e outra perto das transmissões e parque auto mas também do lado de fora do quartel. Embora perto nenhuma acertou nos alvos mas continuavam a cair cada vez mais perto, umas ao lado e outras dentro do quartel.
O tiroteio aumentava e distinguiam-se perfeitamente os disparos das G3, das Kalashnikov e das metralhadoras pesadas que se encontravam nas guaritas.
A estes disparos sobrepunham-se as granadas das armas pesadas que iam caindo cadenciadamente cada vez mais perto dos respectivos alvos.
O Tigre, um soldado negro, apontador de morteiro, instala o morteiro e começa a ripostar com morteiradas na direcção em que lhe parecia estarem colocadas as armas pesadas dos guerrilheiros. Segundo se dizia na altura, o Tigre chegava a colocar no ar 10 granadas de morteiro antes que a primeira rebentasse.
Quando a primeira caía seguia-se uma cadência impressionante de morteiradas.
Para além da cadência o Tigre foi de uma felicidade extrema pois passado pouco tempo deixaram de se ouvir as bombas das armas pesadas.
Restava apenas o tiroteio das guaritas e abrigos e resposta das Kalashnikov.
A noite foi avançando e o dia começou a dar os primeiros sinais de querer nascer.
As munições começavam a escassear e muitos tinham mesmo gasto todas as cartucheiras de que dispunham.
Os guerrilheiros, face ao silêncio das suas armas pesadas e perante a resposta firme do quartel vendo gorados os seus intentos procuraram embrenhar-se no mato e pôr-se a salvo.
O pessoal do quartel, agora mais encorajado ao pressentir a fuga dos guerrilheiros, redobrou o tiroteio e este só parou quando deixaram de ouvir as Kalashnikov.
Pouco a pouco foi-se estabelecendo o silêncio e, com os primeiros alvores da manhã, todos os olhos procuravam indícios da presença dos guerrilheiros.
Nada!
Todos se tinham posto a salvo no meio do mato, o seu elemento natural.
Tudo isto não durou mais que uma hora mas foi, sem dúvida, a hora mais comprida da vida de quantos a viveram.
Foi feita uma verificação geral e concluiu-se que não havia feridos da nossa parte. Tomaram-se medidas para prevenir novos ataques. Com a chegada do dia e o silêncio instalado começaram, finalmente, a bater mais devagar os corações daqueles bravos soldados que, apesar da falta de experiência deram uma prova enorme de coragem e valor. Tinham ganho a primeira batalha das suas vidas e pelas suas vidas.
Numa inspecção mais pormenorizada verificaram-se muitas paredes com estilhaços das granadas das armas pesadas e alguns estragos de material mas nada de muita monta.
Feita a verificação no exterior viram-se muitos rastos de sangue.
A ponte, a famosa ponte do Lunho, apresentava um rombo que a tornava intransitável.
Um dos tramos da ponte tinha voado e repousava a uns bons metros de distância.
Concluiu-se depois que o ataque tinha sido planeado ao pormenor, da seguinte forma:
- Para os lados do Chissindo, sobranceiro ao vale em que se encontrava o quartel, os guerrilheiros tinham instalado três armas pesadas, dois obuses e um canhão sem recuo (ou dois canhões sem recuo e um obus) dirigindo-as para os pontos estratégicos: Messe de sargentos e oficiais e transmissões, que sencontravam perto umas das outras; casernas dos soldados; parque de viaturas.
Estas armas foram colocadas durante o dia e direccionadas com todo o cuidado;
- Durante a noite os guerrilheiros procuraram envolver o quartel tentando ocupar posições que lhe dessem alguma vantagem sobre o quartel;
- O ataque seria despoletado pelas armas pesadas estando já colocados no terreno os guerrilheiros que após os primeiros rebentamentos apanhariam, de surpresa, os nossos soldados a sair das casernas em direcção aos abrigos.
A acção destinava-se mesmo a tomar o quartel do Lunho ou, pelo menos, causar elevados danos.
Foi o caso da ponte que era a menina dos olhos da companhia e, constituiu, por si só, um pesado revés. .
Veio a saber-se mais tarde que naquele ataque foram mortos cinco guerrilheiros e dois vieram a morrer em função dos ferimentos sofridos.
Também no sítio onde estiveram montadas as armas pesadas se vieram a verificar muitos rastos de sangue.
O Tigre acertou em cheio!
E agora fica a pergunta que me não sai da cabeça desde aquela data: O que aconteceria se não tem havido a “providencial” substituição do pelotão do primo do Major por um pelotão da CCS.
Qual teria sido o desfecho?
Não quero tirar ilações ilegítimas mas esta pergunta nunca mais me abandonou e não sou capaz de encontrar uma resposta.
Teria sido igual o desfecho se não se tivessem sucedido estes “acasos”?
O ataque ao Lunho foi amplamente divulgado, pela sua envergadura, e pelo facto de ter sido sofrido por uma companhia que era “Checa” naquelas paragens.
A tal ponto que este ataque passou a figurar, de autor que desconheço, no famoso Cancioneiro do Niassa.
Nesta canção é evidenciada, sobretudo, a aflição dos “Checas” perante um tal ataque e a falta de munições que a determinado ponto se começou a sentir.
Mas a verdade é que, embora Checas, portaram-se como veteranos e repeliram um dos piores ataques (para o batalhão foi mesmo o pior) que no Niassa aconteceram.
Este ataque ficou marcado de forma indelével na mente de quantos o viveram e é, ainda hoje, lembrado como um dos pontos mais significativos na passagem da juventude para a idade adulta.
Foi para muitos a verdadeira perda da inocência.
A partir daquele dia a vida nunca mais foi o que era.
Este texto baseia-se nos relatos que ouvi directamente dos intervenientes da CCS, neste ataque.
Amadeu Carvalho
P.S.
(Naquele mesmo local, alguns anos antes, em 31de Maio de 1965, foi alvo de uma acção semelhante a famosa Companhia 7 de Espadas – C. Cavª. 754 - de que fazia parte o, ainda mais famoso, ciclista Joaquim Agostinho.
Nesse dia tiveram 6 baixas e mais uma da Companhia de Nova Coimbra que foi em seu auxílio.
A Companhia de Joaquim Agostinho foi uma das que mais baixas sofreu naquela zona, a tal ponto que teve de ser evacuada para a Beira pois foi considerada inoperacional.
Quando uma companhia sofria muitas baixas era considerada psicologicamente incapaz de continuar no teatro de guerra.
Nesta altura ainda não existia o quartel do Lunho e as tropas ali estacionadas encontravam-se alojadas num bivaque (“aquartelamento” feito de tendas de campanha).
(Este apontamento referente à Cª 7 de Espadas foi feito com a colaboração de Eduardo Maria Nunes, do Batalhão de Caçadores 598, um dos que foi em auxílio de Joaquim Agostinho, no dia 31 de Maio de 1965.
O meu agradecimento.
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