A Mulher na Praia
por José Caseiro
por José Caseiro
Abril de 1974.
Portugal ficou em festa naquele dia 25, mas havia lá longe na ex-província de Moçambique e já na cidade da Beira, os militares da CART 3503, sem que tivessem a noção do que se estava a passar em Lisboa.
Estavam tristes, não por saberem da revolução, mas por terem o embarque marcado de regresso para a Metrópole no dia 26 e assim se verem obrigados a ficar mais uns dias.
Chegamos a Portugal no dia 28 de Abril de 1974, a CART 3503, sendo a primeira companhia a regressar a Portugal após o 25 de Abril. Regressavam agora, não porque a revolução lhes encurtara a comissão mas sim porque a sua comissão tinha sido longa de mais, porque já fazia 28 meses que lá estávamos, e sempre no pior sítio da guerra em Moçambique, sempre em Mueda, distrito de Cabo Delgado.
Já em Lisboa, com uma chegada muito discreta, quase sem familiares à nossa espera porque quase todos que tinham intenções de irem para Lisboa esperar-nos foram informados por telegrama para não irem, porque o nosso regresso tinha sido adiado e sem data marcada.
Chegado a casa e depois de todos aqueles abraços e beijos a festejarmos o meu regresso, foi tempo, nos dias seguintes, de ir visitar os restantes familiares e amigos e desfrutar este mar maravilhoso na praia de Matosinhos, praia onde passei a maior parte da minha infância e mocidade, praia esta que ao seu lado tem o porto marítimo e de pesca de Leixões, onde os seus barcos saem ao anoitecer para a faina de pesca, e onde, pela manhã as mulheres dos pescadores tinham por hábito irem sentar-se na praia viradas para a entrada do porto esperando que barco onde o seu marido trabalhava regressasse da fauna da pesca.
E cada barco era conhecido por um pormenor, que ao longe só elas reconheciam.
Depois dirigiam-se para o cais de descarga, levando-lhes o pequeno-almoço.
Como de costume após a chegada do ultramar desfrutava-se um mês de férias, para aqueles que podiam, porque infelizmente alguns, por necessidade iam logo trabalhar, nem tinham tempo para descansar a cabeça, eu felizmente tive a possibilidade de desfrutar até mais que um mês e sempre que podia ia até à praia caminhar, saboreando aquele cheiro da maresia e relaxando com o ondular daquelas ondas calmas da praia de Matosinhos.
Entretanto havia uma mulher vestida de negro que sempre que eu ia caminhar junto à praia lá estava, e enquanto as outras mulheres após a chegada dos maridos iam saindo da praia aquela mulher ali permanecia até tarde.
A mulher do pescador quando de luto, usava um lenço negro que punha na cabeça e cobria grande parte da cara, o que tornava difícil identificá-la ao primeiro olhar, mas a minha curiosidade foi mais forte que eu, a pouco a pouco, fui passando mais próximo para tentar descobrir de quem se tratava, e para meu espanto, aquela mulher era a mãe de um soldado português que tinha morrido no ultramar bem próximo de Mueda em Moçambique, foi meu amigo de infância, tinha embarcado no mesmo dia, no mesmo barco que eu, só que ia em rendição individual, fez a picada de Porto Amélia até Mueda com a nossa companhia, esteve em Mueda alguns dias à espera da companhia porque esta ia rodar para uma zona melhor, pensavam eles, e todo este tempo sempre que podia estava com ele, entretanto a companhia onde ele foi integrado passou por Mueda e ele lá seguiu com ela para o tal lugar que eles pensavam que seria melhor que o buraco onde tinham estado.
Os meses foram passando sem que eu tivesse notícias deste amigo de infância, até que aquele dia fatídico chegou.
Estava eu e o meu grupo de combate, nesse dia, de segurança às Águas quando se começou a ouvir o barulho dos hélis a aproximarem-se de Mueda vindo da direcção onde se encontrava a companhia do meu amigo de infância, olhando para os hélis, algo estranho senti, uma dúvida se levantou que me levou a perguntar a mim mesmo: - Será que…?
- Tentei esquecer, porque não tinha nenhum indício de quem se tratava e do que se tratava, mas como as más notícias correm depressa, rapidamente soube que tinha sido uma viatura que pisou uma mina anti carro e que a rebentou, originando mortos e feridos graves.
A notícia de que havia mortos preocupou-me, pelo algo estranho que senti quando os hélis estavam a passar por mim, minutos antes.
Tendo um bom relacionamento com o 1º sargento do hospital, na primeira oportunidade que tive fui pedir-lhe que me deixasse ver os nomes dos feridos e dos mortos que tinham dado entrada naquele dia, na esperança de não encontrar lá o nome do meu amigo.
Foi um choque enorme, um nó na garganta, uma raiva.
Foram mil e um pensamentos e palavrões que dirigi naquele momento aos autores da morte daquele meu amigo de infância, quando li o seu nome na lista dos mortos.
Pedi para ir ver o corpo mas não foi possível, porque tinha ido para a casa mortuária e esta já se encontrava fechada.
Bastante abalado fui para a flat escrever um aerograma a uma pessoa amiga e vizinha dos pais do falecido, aerograma que levaria, em média, quatro a cinco dias a chegar ao destino, pensando eu, que quando o aerograma chegasse, os pais já eram conhecedores da morte do filho, e aquele aerograma seria a explicação de como aconteceu, o que, segundo a informação que me deram, com a explosão, foi projectado, e ao cair, bateu com a cabeça numa pedra e teve morte imediata.
Só que o aerograma chegou no mesmo dia que os dois telegramas que foram enviados aos pais, o primeiro da parte da manhã a dizer que o filho tinha sido gravemente ferido e o segundo da parte da tarde a dizer que não tinha resistido aos ferimentos e tinha falecido.
A pessoa amiga a quem escrevi, quando chegou a casa depois de um dia de trabalho, deparou com os vizinhos aos gritos e com os pais em pranto pela morte do filho, esteve um pouco junto deles e foi depois para casa, onde só então viu na caixa do correio o meu aerograma.
Diz-se que as más notícias correm velozes, mas quando chegam todas ao mesmo tempo, fazem pensar que o destino é demasiado cruel.
Passados mais de ano e meio após a morte deste meu amigo vou encontrar a sua mãe ali sentada na praia olhando para o mar dia após dia, achei que deveria ir falar com ela para a confortar um pouco, porque ela sabia que o seu filho tinha ido comigo para o ultramar e que tinha estado comigo em Mueda, mas para mim estava a ser difícil.
Como seria o início da minha conversa com ela?
Lá comecei por lhe perguntar se tinha algum familiar a andar ao mar, ao que me respondeu que não; deu-me um grande abraço e beijos de satisfação por me ver, sabendo que eu tinha chegado recentemente do ultramar.
Aproveitando aquela satisfação de me ver perguntei-lhe:
- Então porque vem todos os dias aqui para praia?
A resposta foi rápida, e deixou-me por momentos sem palavras:
- Venho para aqui esperar pelo navio que levou o meu querido filho para o ultramar e que o há-de trazer de volta para os meus braços.
Sem palavras e sem saber o que fazer, lá encontrei forças para continuar a conversa dizendo-lhe:
- Mas já trouxeram o seu filho porque...
- Ia dizer-lhe que o filho já tinha falecido há mais de ano e meio, mas ela interrompeu-me: - Dizem-me que o meu filho já veio, mas não acredito, porque ele quando partiu para o ultramar prometeu-me que voltaria para me abraçar, e já lá vão mais de dois anos e ele não voltou para os meus braços.
Quantas mães depois de terem perdido os seus filhos na guerra do ultramar se sentaram à porta de casa, ou aguardaram num caminho, numa estrada, olhando para o infinito na esperança que o seu querido filho aparecesse com as malas nas mãos a correr para os seus braços?
Como a mãe daquele meu amigo…
Uma espera em vão, porque o seu filho estava morto e enterrado.
Será que esta mãe, agora já falecida, teria encontrado o seu querido filho na outra vida, e tê-lo-ia abraçado fortemente conforme desejou enquanto viva?
Este meu amigo não deixou apenas uma mãe sem o filho, deixou também uma filha sem o pai, que nunca o haveria de conhecer, pois que quando este embarcou para Moçambique deixou a mulher grávida de poucos meses.
A guerra faz com que tantas desgraças juntas levem a pensar que o destino é mesmo demasiado cruel.
por José Caseiro |