Tempo de trevas e escuridão e de uma tristeza profunda!
Diversas Crónicas, Vivências, Fotos e outras Recordações traduzidas em texto, de autores diversos da sua passagem pela Guerra, nos territórios da Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, nos anos idos de 1961 a 1975...
sexta-feira, 5 de junho de 2020
Tempo de trevas e escuridão e de uma tristeza profunda!..., por António Júlio Sarmento
quinta-feira, 4 de junho de 2020
17 de JULHO de 1970 – Morte e lágrimas no Planalto dos Macondes..., por Manuel Sousa
17 de JULHO de 1970 – Morte e lágrimas no Planalto dos Macondes
I -O Planalto em 1970
A Operação Nó Górdeo não estava a correr conforme os altos comandos tinham previsto.
Aquela que foi considerada a maior operação militar levada a cabo durante a guerra do ultramar, fez confluir para o Planalto dos Macondes (também conhecido como Planalto de Mueda), uma quantidade enorme de meios humanos e materiais, nunca antes vistos, com o objectivo de dar um golpe de misericórdia à Frelimo e assim pôr fim à guerra em Moçambique.
Foi tudo planeado e os militares corresponderam àquilo que lhes era exigido de forma abnegada e corajosa.
Mas, houve um pequeno grande lapso dos nossos estrategas: avisar o inimigo que íamos atacar em força.
Um avião Dakota com um potente altifalante, sobrevoava toda a região e na língua nativa, pediam às populações para se entregarem nas povoações sob controle militar e abandonarem o mato e deixarem de apoiar os “terroristas” pois a tropa portuguesa ia ocupar as aldeias.
Obviamente que demos tempo suficiente para que os guerrilheiros da Frelimo se retirassem para locais mais seguros, levando consigo parte das populações que lhes serviam de apoio, deixando para trás os velhos que já não os podiam acompanhar nas marchas intermináveis pelo mato.
Deu-se assim início a operações de guerrilha em locais até aí mais ou menos calmos.
Como alguém já disse, foi como dar um murro num vespeiro.
Na retirada, a Frelimo deixou para trás as minas que enterraram nas picadas, onde sabiam que mais tarde as nossas tropas haveriam de passar.
A nós militares, o alto comando mandou-nos construir palhotas e providenciou-se para que houvesse alimentos para os milhares de guerrilheiros e populações que previam se iam entregar ás nossas forças armadas, com medo de serem mortos ou capturados de forma a que fossem recebidos com a hospitalidade possível.
Em Muidumbe, onde estavam sediados dois pelotões do Esquadrão de Cavalaria 1, o Pelotão nº1 e o nº2, ao qual eu pertencia, estava previsto que se entregassem mil e tal elementos.
Havia palhotas construídas para os abrigar.
Ninguém se entregou.
E o “BOCAS”, um velho Dakota da Força aérea, continuava com um potente altifalante a sobrevoar o mato e a pedir aos guerrilheiros e civis que se entregassem às nossas F.A.
Lançava panfletos divulgando as vantagens que havia se se pusessem do lado das Forças Portuguesas.
Mas os Macondes são um povo especial.
Sabem o que querem e, por bem, são leais até à morte.
Por mal, no seu território, são invencíveis.
E esse mal, já algumas das nossas autoridades administrativas civis, o tinham feito.
Mas isso é outra história.
O planalto é arborizado por uma vegetação rasteira, composta de densas lianas resistentíssimas, impenetráveis e que raramente atinge dois metros de altura, que envolvem as árvores que delas não se conseguem libertar.
Por baixo deste céu verde, não se vê o sol e são poucos os locais onde a claridade penetra.
Vista do ar, parece um mar verde-escuro, com umas raríssimas pequenas clareiras.
Nesse tufo para nós impenetrável, existem túneis cavados na vegetação por onde os Macondes se deslocam a pé, abaixados, protegidos do sol e da vista de intrusos, deixando para trás, em locais que só eles sabem as suas explosivas armadilhas que tantos mortos e estropiados nos causaram.
Claro que as nossas tropas, à custa de muito sangue derramado, lá foram aprendendo a deslocarem-se por esses túneis cavados na vegetação, improvisando duma forma extremamente simples os seus detectores de armadilhas.
Só mesmo o engenho desses soldados, inventaria um detector constituído por uma cana e um cordel.
Mas, como os guerrilheiros e populações não se entregavam e as principais Bases inimigas foram encontradas pelas tropas especiais Portuguesas abandonadas, era necessário incendiar a vegetação para lhes podermos “pôr a vista em cima”.
Mais uma vez a genialidade dos comandos manda largar pela Força Aérea bombas incendiárias “Napalm”, para incendiar esta vegetação que servia de abrigo aos nossos inimigos.
Mas as lianas nem sequer ardiam.
O tipo que inventou a Napalm nunca esteve no Planalto de Mueda e esqueceu-se de pôr no Manual de Instruções que esta bomba não servia para fazer arder aqueles arbustos Macondes.
Esqueceu-se também de avisar que por qualquer razão, ali, muitas delas não explodiam.
Ou por serem mal largadas ou porque a vegetação amortecia o embate no solo.
Da mesma forma que nós capturávamos o material que os guerrilheiros abandonavam em fuga, eles aproveitavam e guardavam o que podiam do nosso.
Entre ele, bombas da aviação que não explodiam.
II – Nangololo – entregaram-se dois guerrilheiros.
Enquanto a Engenharia Militar tentava aumentar e alargar a pista de aviação, com os enormes Caterpillars D -12 abrindo mato nas lianas Macondes, com as lagartas a derrapar, os homens do Esquadrão e não só, faziam a protecção aos operadores das máquinas.
E, quando o Caterpillar já não tinha força para arrancar e partir as lianas, as motos serras ajudavam na tarefa.
Era muita gente na pista uns meio fardados meio desfardados, negros, brancos, asfaltadores da engenharia, militares emboscados nos limites da pista, Panhards para cima e para baixo, homens a pé ou de Unimog, pista acima e pista abaixo.
O quartel do Batalhão de Nangololo era um luxo.
Estava num dos extremos da pista.
Tinha uma Igreja que servia de camarata para aquele pessoal todo e uma bateria de artilharia que substituía o relógio do campanário da Igreja a dar horas.
Durante a noite, de hora a hora, lá se disparavam uns obuses para a serra do Mapé, fazendo estremecer tudo e acordando toda a gente.
Toda a gente talvez não, mas pelo menos aqueles que como eu, não estavam habituados aquele estranho modo de dar horas.
Quando o vento soprava mais forte, o feijão macaco atacava todos.
O aquartelamento até tinha uma porta de armas com uma cancela de pau, para não deixar entrar intrusos no recinto.
Aquilo parecia ser a sério.
No outro extremo da mesma pista a cerca de 2 quilómetros, eram as instalações e comando do Esq., Cav. 1 que, incompatibilizado com o comando do Batalhão, era constituído por quatro tendas cercadas por uma corda, cerco interrompido pela entrada guardada por um garboso soldado também para impedir entradas de intrusos sem prévia autorização do capitão.
O gabinete do sargento amanuense era em cima de uma Mercedes Benz de seis toneladas, onde se sentava sobre umas caixas de madeira cheias de granadas de morteiro e escrevia à máquina e tratava de toda a papelada com o esmero possível.
Um belo dia aproximam-se dois homens da sentinela do Batalhão de Nangololo e perguntam pelo Comandante.
Uma pergunta tão estranha num dia tão normal fez com que a sentinela lhes respondesse: “- Eh! Pá, o que é que vocês querem?”
“Queremo-nos entregar!”
Só depois é que a sentinela reparou que as armas dos dois não eram iguais à dele, mas sim Kalashnikovs russas.
Apontou-lhes a G3 assustado, eles entregaram as armas e lá chamou alguém para os acompanhar ao Comandante.
Eles, dois militares da Frelimo, aproveitaram a confusão que havia na pista de Nangololo passaram pelas nossas seguranças, e no meio dos nossos militares para se entregarem.
Se não se tivessem apresentado, teriam almoçado na cantina dos nossos soldados, dormido na camarata e podiam ter seguido viagem no dia seguinte.
Haviam casos anedóticos destes. Já tinha acontecido um ano antes em Nova Guarda.
Estávamos sentados à porta de uma cantina a comer a ração de combate e aproximam-se de nós dois africanos, dirigem-se ao Alferes que estava sem os galões e dizem-lhe: vimo-nos entregar. Entregaram-nos as armas e levamo-los para Vila Cabral. Como sabiam quem era o alferes se estava sem galões?
Mas, voltando a Nangololo.
A CCS (Companhia de Comando e Serviços) fez uma tentativa de levantamento de rancho (greve à alimentação) e, de castigo, foram mandados fazer um patrulhamento a pé no mato.
Estes militares não saíam habitualmente do aquartelamento.
Após duas horas de caminho, foram emboscados.
As rajadas ouviram-se perfeitamente no Quartel e o capitão Faria Afonso, meu comandante, que tinha a sua tenda de comando no extremo da pista de aviação de Nangololo, mete a Panhard a corta mato, conforme pôde, pois haviam umas clareiras próximas do Quartel onde tinha sido uma antiga machamba.
Cruza-se com os militares da CCS que já vinham de regresso com um ferido ás costas.
O Capitão Faria Afonso tenta encontrar os atacantes pois segundo ele deveriam ainda andar por perto, mas encontra apenas um acampamento abandonado com algumas palhotas e sepulturas.
O acampamento era, provavelmente, utilizado pelos guerrilheiros que ao aperceberem-se da aproximação da companhia de Nangololo, abriram fogo sobre os militares desprevenidos, atingindo um deles.
Os guerrilheiros quando sentiram a Panhard fugiram levando consigo tudo o que puderam deixando para trás, além dos mortos sepultados, as palhotas e um casal de velhos que devido à avançada idade não os puderam acompanhar.
Os militares do Esquadrão destruíram tudo, queimando as palhotas e destruindo as sepulturas.
Isto aconteceu, dois dias antes da Frelimo colocar na picada habitualmente patrulhada pelo Esquadrão, as bombas que a nossa Força Aérea largou e não explodiram.
III - 17 de julho de 1970
Nesse dia 17 de julho de 1970, uma patrulha composta por duas Panhards, uma Berliet preparada para rebentar minas e um Unimog com atiradores, saiu de Miteda para Nangololo.
Como o percurso era curto, normalmente fazia-se a “picagem” num dos sentidos, regressando rapidamente para não “dar tempo aos guerrilheiros colocarem minas”.
Mas nesse dia, os militares demoram-se mais tempo em Nangololo do que o normal e, no regresso, a primeira Panhard cujo chefe de carro era o Furriel Milº. Carlos Alberto Almeida Dias, conduzida pelo Daniel Viegas fez explodir uma bomba.
O cesto (torre) da Panhard foi arrancado do resto da estrutura e projectado a cerca de vinte metros ficando a arder com dois militares lá dentro enquanto as munições e granadas que transportava explodiam e a gasolina fazia arder tudo, não deixando que alguém se aproximasse dos destroços.
O Viegas, recebeu sob si o impacto directo da bomba e o seu lugar de condutor “abriu-se” como se de uma lata de sardinhas se tratasse.
O soldado condutor do rebenta minas, o Matos, também morreu com um estilhaço da explosão.
Quem testemunhou o estado em que ficaram os corpos da tripulação da Panhard, fez-me um relato que não me atrevo aqui a reproduzir. Os militares sobreviventes ficaram em estado de choque sem saber que fazer.
Quando em Nangololo se soube do desastre, foram dadas ordens para a coluna regressar, mas o capitão Faria Afonso não as acatou dirigiu-se para o local do rebentamento e deu ordens para que se avançasse.
O Capitão Faria Afonso já tinha idade para ser Major, mas alguns castigos atrasaram a promoção. Tinha-lhe aparecido a oportunidade de ser promovido por bravura e distinção.
O seu condutor de Panhard, o soldado Bramão Miranda traumatizado com o sucedido, implorou ao capitão que voltassem para trás. Mas este insistiu para que se contornasse o buraco causado pela explosão e avançasse.
O Bramão responde-lhe: “Meu capitão, é melhor mandarmos fazer picagem antes de avançarmos, podem haver mais minas por aí.”
Ao que o capitão lhe responde: “Se estás com medo, sai daí, conduzo eu a Panhard”.
O Bramão deu o seu lugar ao capitão e chorou de raiva.
Todos sabíamos que ele era um valente soldado, nunca tinha medo ou não fosse transmontano. Nunca ninguém lhe tinha dito que era covarde.
Antes do capitão arrancar com a auto-metralhadora, o Bramão, a chorar, subiu para o lugar do capitão.
Poucos metros mais à frente uma nova explosão sob a Panhard, destruindo-a e com ela os seus ocupantes.
Quando chegam reforços de Miteda, recolheu-se conforme se pôde o que restava dos corpos dos seis tripulantes das Panhards e do condutor Matos da Berliet rebenta minas.
Mais à frente, no sentido Nangololo - Miteda, após picagem, foram encontradas mais duas bombas da nossa Força Aérea, “ligadas” a duas minas anti-carro cada uma delas.
Só assim soubemos o que provocou a destruição das Panhards, caso contrário, só poderíamos especular.
Nessa noite ficaram dois furriéis e alguns soldados a guardar os destroços e o que restava dos corpos. Hoje passados 50 anos, os furriéis, continuam a fazer tratamentos psiquiátricos.
Há quem diga, mas isto são suposições, que esta acção da Frelimo que já estava numa fase de retirada do planalto, foi a retaliação contra o Esquadrão, pela acção levada a cabo pelo capitão Faria Afonso, dias antes, no acampamento encontrado próximo de Nangololo.
Eu soube dos acontecimentos nesse mesmo dia à noite.
Estava em Muidumbe e liguei o C42, rádio de FM da Panhard, tentando ouvir as conversas dos guerrilheiros que comunicavam nesta onda de frequência.
Mas, acabei por sintonizar os meus camaradas de Nangololo e Muidumbe a falar sobre estes acontecimentos.
Comuniquei-os aos meus camaradas de Muidumbe que também ficaram em estado de choque.
No dia seguinte de manhã, quando o 1º pelotão que estava em patrulha regressou, saiu o 2º pelotão para a picada da Capoca, como se nada tivesse acontecido.
Passados cinquenta anos, ponho-me a imaginar como seria bom beber um copo com o Daniel Viegas como faço com o Mealha, passar um fim de semana no Alqueva com o Almeida Dias, como faço com o Viriato ou dar um abraço ao Bramão com dou ao Banza.
Estes homens partiram prematuramente, mas procuro imaginá-los com os cabelos brancos filhos e netos, como eu.
É bom que alguém os recorde pois eram militares destemidos, disciplinados, extrovertidos e duma coragem a toda a prova.
O Capitão Faria Afonso recebeu uma Cruz de Guerra de 1ª classe por este “ato de bravura.”
Os outros que com ele morreram, apenas foram vítimas das loucuras dos homens.
Já quase ninguém fala deles.
Nesse dia 17 de julho de 1970 morreram do Esquadrão de Reconhecimento de Cavalaria 1 de Moçambique, os seguintes sete militares:
Há quem defenda que esta guerra deveria ter continuado;