Madrugada de 3 de Fevereiro de 1968.
Muidumbe – Cabo Delgado – Moçambique.
Sábado – 2 horas da manhã, um frio do caraças.
Foi o Beiçolas que me rendeu no posto de vigia, aquele que fica mesmo por detrás da nossa caserna.
Uma noite e um céu sem nuvens.
Sim, o céu não é o mesmo, as constelações não estão no mesmo sitio, eu também não sou o mesmo e também não estou onde deveria estar.
Durante as horas que passei no abrigo, G3 entre as pernas, duas granadas no cinturão e dois carregadores de balas, não parei de cantarolar uns fados e alguns cantos alentejanos, cigarro após cigarro. Guardei as beatas, nunca sabemos quando o tabaco acaba.
- Marroquino, podes ir para a cama.
- Não me apetece entrar naquela “puta” de caserna, Beiçolas.
- Beiçolas é o teu pai.
Lembrei-me do meu quintal e das noites de verão, na companhia do meu avô Coutinho e das suas explicações sobre as estrelas, sobre o caminho de Santiago.
Noite escura, nem conseguíamos ver o arame farpado, no qual estavam penduradas dezenas e dezenas de latas de conserva e de garrafas de cerveja....vazias....claro, ao mínimo toque aquela merda começava a chocalhar.....e cá vai disto......mais um carregador....e o nosso Salazar....mais pobre.
Sábado, noite de baile no Boa-Esperança e nas outras coletividades de Portimão....é Carnaval.
O meu Carnaval é outro, aqui estou em pleno planalto maconde, mascarado de salvador da Pátria, camuflado a cheirar a suor, sujo....temos de poupar a água.
Não só a água, temos de nos poupar a nós, cada vez que vamos buscar água corremos o risco de uma emboscada.
Cheiro mal dos pés, nem posso descalçar as botas dentro da caserna, todos se descalçam no exterior.
Faz um ano, ainda não sabia o que era a tropa, o que era África, o que era a guerra, e o medo de morrer aos vinte anos.
Nunca se morre aos vinte anos...ou quase.
Desconhecíamos o sabor das ausências, mesmo as mais insignificantes, mesmo aquelas que que nunca pensamos serem ausências.
Sonho com um prato de feijão com arroz. feito pela minha mãe, mais o toucinho, mais o chouriço.....e aquele pão.
Sentei-me à entrada da caserna, contei os cigarros do maço LM, tabaco moçambicano, restam-me seis cigarros.
Ainda não me esqueci da tua voz, na verdade está cada vez mais apagada, não completamente.
O Tavira foi mijar para o tronco do imbondeiro...um tronco enorme....ele pequenino, saiu e entrou na caserna, sem uma palavra....cueca branca....magro.....para nós é o “ratinho.”
Imagino que para lá do arame farpado existe vida, aquela vida que nos usurparam.
Caraças, não quero voltar a chorar, não quero voltar ás recordações de outro tempo.
Não gosto do piar das aves noturnas, africanas.
Tenho saudades dos meus pardais, aqueles que comiam os figos do meu avô Coutinho, aqueles que por vezes caíam nas armadilhas da minha infância e que eram comidos, fritos na única frigideira da minha avó Júlia.
Não, hoje não fumei maconha, não me quero viciar naquela merda que nos faz voar, que nos faz acreditar que para lá do arame farpado, estão todas as mães, todos os pais, todas as esposas, todos os filhos, todas as namoradas., deixados num caís qualquer de Lisboa, ou numa estação de caminho de ferro.
Quatro horas da manhã, vou estender-me em cima da cama, em cima da única manta, aquela que esconde a negrura dos lençóis.
Vou tentar dormir.
A guerra?
Mas qual guerra?
(Apontamentos passados a “limpo” em 17 de Março de 2005)
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