Nunca Atirei Pedras Aos Cães.
Vocês....Faltam-me.
Paris – 12 de Outubro de 1970.
Quem diria que um dia, teria saudades das mais simples coisas.
Quem diria que um dia teria saudades de vocês, do baralho de cartas, gasto pelo tempo, pelas nossas mãos, quase negras.
Sim, meus grandes sacanas, tenho saudades dos pratos de alumínio, do cheiro da comida, feita por um cozinheiro, que nunca o foi, do vinho quase vinagre, e do som da nossa caserna.
Faz hoje um ano que vos deixei, apressadamente, à porta do quartel em Estremoz.
Por vezes procuro o camuflado, entre a roupa de todos os dias, o cinto quase desfeito, as botas com as solas descoladas e as cuecas que já não o eram.
Sim, hoje sinto-me um espantalho.
A calça vincada, os sapatos engraxados, a camisa lavada e o cabelo penteado.
É estranho ter tanto cabelo, tenho saudades de uma carecada, daquelas de cabeça completamente rapada.
Tenho novos amigos, novos companheiros, pouco a pouco, tento voltar à casa de partida, nem sempre o consigo.
É mentira o que dizíamos, que rapidamente esqueceríamos o nosso tempo de guerra, o tempo em que contávamos o tempo, eu lembro-me de vocês, de quase todos, das gargalhadas, das zangas, das lágrimas, da nossa revolta.
Faltam-me as palavras para vos dizer o que sinto.
Hoje, escrevo para vocês, por vocês, sem ser gozado...Então marroquino, já estás a escrever as tuas merdas?
Volto a África, não todas as noites, mas quase, sonho, revejo as picadas, volto a Muidumbe a Nagande, a Moatize e a Tete, e sinto o frio na barriga, aquele frio que todos sentíamos antes de mais uma saída para o mato, confiro as cartucheiras, conto as granadas e aguardo as ordens de um alferes qualquer, e o grito... “ motores em marcha, toca a andar.”
Voltamos a passar pela picada de Pundanhar, lá, onde “ficaram” o Guerra, o Bibiu, o Braga e o Amável.
Revejo-os a todos, semblante carregado, tristes, e eu que esperava por vocês em Palma, naquele paraíso africano, naquela praia de areia branca, cheia de palmeiras e coqueiros.
Com o tempo tudo passa, merda de frase feita, nada passa, nada passou, continuo a vê-los, ouço-vos, como se o tempo não tivesse passado.
Vocês....faltam-me.
( Apontamentos – França )
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