José Nobre
"Nunca Atirei Pedras Aos Cães."
Muidumbe - Cabo Delgado - Moçambique.
Muidumbe - Cabo Delgado - Moçambique.
"A PASTA"
"O papel onde escrevi este apontamento, está amarelado e foi escrito a lápis, o que dificulta ainda mais a leitura de alguns dados.
Sei que a foto foi tirada em Mueda, entre os meses de Outubro de 1967 e Março de 1968.
Esta é mais uma recordação de guerra, da minha guerra, que em nada se assemelhou à guerra de outros camaradas, no sentido em que eu sempre fui o cabelo na sopa, o apanhado pelo clima, o gajo que tinha o nome da namorada, escrito em letras garrafais no para-choques dianteiro da Berliet.
O soldado condutor - 044483/67.
Era uma peça estranha na engrenagem militar, fazia o que me mandavam fazer, mas nunca mais do que isso.
O código militar era cumprindo na íntegra,mas com uma grande diferença, estávamos no mato e eu tinha uma G3 (espingarda automática) só para mim, a tal que dormia sempre comigo, dois carregadores de balas e cinco ou seis granadas, sempre prontas....debaixo da cama.
Como tal, mais valia não chatear muito o "marroquino."
Na prisão já eu estava, uma grande prisão, cercada de arame farpado, e de onde ninguém queria sair, só em coluna militar, ou para operações militares contra a guerrilha.
Foi, mais uma coluna de reabastecimento a Mueda, e como sempre, levei comigo as "coisas"que sempre me acompanharam, fosse para onde fosse, ou seja, a Pasta, a minha cadela, a Lassie, que não era mais que uma escova atada a uma corda, e a Concha que apanhei na Praia da Rocha, dias antes de embarcar para Moçambique.
As histórias da Concha e da minha cadela Lassie, já as contei.
A Pasta, antes de partir comigo para Moçambique, acompanhou-me durante alguns anos na minha vida escolar na EIC de Silves.
No dia em que fiz a mala, só tinha uma, decidi também levar a dita cuja.
E assim foi, meti-a dentro da mala e lá fomos salvar a Pátria.
A pasta não tinha nada dentro, sempre andou fazia.
Fui gozado.... "olha o gajo da pasta".."queres ir para o hospital psiquiátrico?".... "Queres férias na Beira?"
Um dia, à entrada do quartel em Mueda, o sargento de serviço perguntou-me...."Ó soldado, o que é que tens dentro da pasta?"
Respondi, nada, nada meu sargento.
Mandou-me abrir a pasta e efectivamente nada tinha dentro.
Mandou-me passar, mas ficou com um olhar desconfiado.
Horas depois, quando saí do quartel o gajo pediu-me novamente para ver a pasta...continuava vazia, como sempre.
Ninguém imaginava, ninguém via o que aquela pasta continha.
Estava cheia de recordações, de cheiros, de terra de Silves, de água do rio Arade, de laranjas roubadas nas hortas, de perfume das namoradas e de amores jamais correspondidos.
Bastava abrir a pasta e apareciam, os gajos que dividiram comigo o tempo de escola, o tempo dos jogos de futebol no antigo largo da feira, os matraquilhos e o bilhar.
Ainda hoje, vejo a minha pasta a fazer de baliza em mais um jogo de futebol, em mais uma aposta, onde estava em jogo o dinheiro que tínhamos para o almoço.
Eis a razão pela qual a "PASTA" fez a viagem comigo, todas as viagens.
- Ó Nobre, o que é que tens dentro da pasta?
- Recordações..........."
José Nobre
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