quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Uma operação e uma tempestade tropical diluvial, por José Capitão Pardal.


Hoje sou eu, que vou contar uma história passada em África, mais propriamente, na zona de Chai - Cabo Delgado, em Moçambique
 
Como era hábito, quando se programava uma operação, só tínhamos conhecimento dela na noite anterior, para que os menos avisados não "dessem com a língua nos dentes" e a informação não chegasse ao aldeamento onde, certamente, o IN tinha informadores e o segredo devido não se quebrasse...
 
O certo, certo era que na maior parte das vezes, já não era novidade no aldeamento, mas isso fica para outro artigo...
 
O que vos quero contar é que uma dessas operações, destinada a nomadizar durante três dias para a zona do Lago Nguri, foi de um fiasco a toda a prova...
 
Era tempo das chuvas...
 
Fomos transportados em viaturas Unimog, até à ponte sobre o Rio Messalo, meia dúzia de quilómetros a seguir ao Chai, a caminho de Antadora e Mocímboa da Praia.
 
Ainda sobre a ponte, começaram a rebentar, de todos os lados, sucessivas trovoadas tropicais, com chuva diluvial, trovões e relâmpagos...
 
Mas prosseguimos...
 
Que espetáculo...
 
A tempestade era tal que, mesmo durante o dia, só os relâmpagos nos possibilitavam ver alguma coisa à frente do nariz...
 
Os dois pelotões seguiram pela estrada (atual nº 243) e a cerca de dois quilómetros após a ponte do Messalo, já os perto de cinquenta homens iam totalmente encharcados...
 
Como já tínhamos dificuldade em progredir, virámos para a direita na direção do Lago Nguri (nunca o cheguei a ver), fomos obrigados a parar, após andar dois a três quilómetros e a abrigar-nos, num palmeiral.
 
Ainda andámos um pouco mais, mas parámos, num local onde havia muitas bananeiras e tentámos abrigar-nos debaixo das suas folhas... Sempre era melhor que nada...
 
O espetáculo continuava, com o ribombar dos trovões, o contínuo relampejar e a chuva diluviar a entrar-nos no corpo, como se não tivéssemos nada vestido...
 
A água entrava pela zona da cabeça e rapidamente saía junto às botas, também totalmente encharcadas... 
 
A água era tanta, que mais parecia um dilúvio.
 
Durante três dias e duas noites não conseguimos sair dali...
 
A água era tanta que não mais conseguimos progredir...

Os três dias e as duas, noites da operação, foram passados no mesmo local, totalmente encharcados, com chuva constante e diluvial, e sem a missão cumprida.
 
E foi assim que regressámos ao Chai, ainda sob chuva intensa...
 
Nunca tinha visto e nunca mais vi, uma tempestade tropical tão intensa e durar tanto tempo...

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

NOITE DE SENTINELA..., por José Godinho D'Abranches Leitão

In “Pedaços de memória…de rajada”

José Godinho D´Abranches Leitão

http://blog.comunidades.net/jdabranches/
Ex- Furriel Miliciano C. CAVª 2752
Moçambique 1970-1972
                    


Eram assim as primeiras noites de sentinela, do 4º Grupo de Combate naquele inferno chamado Serra do Mapé.
Ali fomos parar cerca de 120 jovens acabados de sair da adolescência, brutalmente lançados na fogueira da guerra colonial.
Os postos de vigia, eram feitos com um pequeno telheiro de chapa zincada e com barris cheios de areia, dispostos em meia lua, num morro logo à saída do abrigo subterrâneo.

O cenário era surrealista!
Alguns corações gravados nas aduelas dos barris, com as setas do Cupido das muitas namoradas, noivas ou mesmo mulheres de muitos que já por ali  passaram.

- Cabrões !
Com um piparote bem medido, Uvaldo espalmou o mosquito contra o pescoço. 
Já não me lixas mais.

Sentia-se chegar ao limite da resistência, os tornozelos e os nós dos dedos dolorosamente inchados de tanta ferroada.
Prestes a desatar aos berros.
Ao redor do aquartelamento, à volta dos 4 postes de iluminação que mal iluminavam, os mosquitos saíam da noite em nuvens cerradas.
"Maldita terra, malditos mosquitos.
Não bastava este calor de morrer."
Pousou a G-3 no parapeito do posto de vigia e pôs-se a espiar o negrume.
Múltiplos ruídos, indestrincáveis, de todos os timbres, elevavam-se ao redor das lâmpadas...
Era um zumbido esquisito e suspeito.
Por instantes esqueceu-se dos mosquitos, percorrido por um arrepio.
Mas o ressonar dos dois camaradas, mesmo no abrigo junto, serenou-o.
- Se estivesse sozinho morria de cagaço, pensou o Uvaldo!...

Olhou o relógio de pulso.
Os ponteiros fosforescentes indicavam as três horas da madrugada.
Dentro de três quartos de hora despertaria o Zé da Povoa para o render.
Seria a sua vez de ferrar o galho, se fosse capaz.
Apetecia-lhe fumar um cigarro mas a disciplina imposta pelo Furriel que comandava a Secção, sobrepôs-se ao desejo.
Não lhe apetecia mesmo nada apanhar uma porrada ou levar um tiro, pois o IN podia detetar a incandescência do apetecido cigarro na penumbra da noite.
"- Sentinela, éh sentinela !"
Emaranhado nos seus pensamentos, levou tempo a recompor-se.
- Estavas a dormir, logo na primeira noite ?
Pela voz, reconheceu o furriel Leitão.
- Aqui no poleiro, não dá o sono a ninguém, meu furriel.
- Podia passar por aqui um regimento de turras que não davas por nada.
Vamos lá a ver se abres mais os olhos.
Uvaldo sentiu os passos do furriel perderem-se na noite.
Enervado, tornou a olhar o relógio. Estava na hora. Até já passavam cinco minutos.
- Acorda, Zé, está na hora.
O camarada soergueu-se da cama improvisada, estremunhado.
- Já ? Não me estás a tramar ?
- Vá, levanta-te. Não acordes o Vidinha.
- Logo agora que estava a sonhar com a minha mulher, que deixei lá no bairro das Caxinas.
Tens um cigarro ?
- Olha o Furriel.
- O Furriel foi dar a volta aos outros postos.
Só daqui a 20 minutos é que volta a passar.
Dá cá o cigarro que eu uso o quico e faço um buraco no chão para botar o fumo fora!
O clarão do fósforo iluminou dois rostos terrosos. Depois ficou a ponta vermelha do cigarro a fazer arabescos na noite.
Podia ver-se a 500 metros bem lá no fundo da pista.
- Não te deitas ?
- Não tenho sono. Fico contigo um bocado.

- Saudades? Deixa lá que 4ª feira é dia de São Correio e já estávamos a 3 dias.

Falavam em surdina, para não acordar o Vidinha.
Os mosquitos parece que foram pra outras bandas.
Entretanto, sai do abrigo o Raposo, que não tinha sono nenhum.
- Sabias que as peras que trouxe da minha terra, ainda estão rijas como cornos? - disse o Uvaldo.
-Ainda duram? Perguntou o Zé da Póvoa, dizendo que julgava que tinham acabado ainda em pleno alto mar.
- E tu sabias que deixei um filho na barriga da minha mulher?
- Puta de merda esta guerra!
- Dizes bem, esta merda.
Subitamente, um estampido acordou a noite.
- Ouviste ?
- Foi no posto junto à porta de armas.
Soou outro tiro, logo seguido duma rajada.

Silenciosamente aproxima-se o Furriel que anda a fazer ronda.
Eram 4 da matina.
Passa palavra e vai avisar o Comandante.

Pela vala comum, tropeçando em dezenas de ratos, o Gouveia que entretanto tinha também saltado do abrigo.
- Será um ataque?
Disparou um “verilaite” para o ar e nada!!!
Ficamos de dedos crispados nas G-3.
O Congolo, negro como um tição aparece e prega-nos um susto do caraças.
- Terá morrido alguém ?
- E nós aqui sem saber de nada.
- Que porra de situação.
- Calma - aconselhou Furriel. - Não me parece coisa grave.
- Sentinela! Sentinela? – alguém murmurava próximo.
- Quem está aí ? - perguntaram em coro.

- É o furriel Crispim. Estejam tranquilos que ainda não é desta que vão morrer.
Foi o Palhaço que julgou ter ouvido um ruído estranho e desatou às rajadas como um maricas.
Algum bicho que tocou nas latas penduradas no arame farpado.
- Que cagaço, meu furriel ! Disse o Uvaldo.
- Já pensávamos que os turras tinham atacado.
-O Palhaço insiste que viu 2 turras já dentro da 2ª linha de arame farpado!!!?
- Também não tinham sorte nenhuma, pois o Furriel Godinho tinha a zona toda armadilhada com minas, e dificilmente chegariam inteiros ao arame farpado da 1ª linha.
- Ponham-se mas é a pau com os ataques dos mosquitos e olhos bem abertos!
Olhos bem abertos. ok? Gritou o Capitão.
- Que susto aquele gajo nos pregou - desabafou o Zé da Póvoa. - Ia-me borrando todo, meu Capitão.
- O furriel disse que eram as latas mas podiam muito bem ter sido os turras.
- Nunca se sabe.
- Afinal, quem é que está de sentinela? Eu ou vocês ? – questionou o Furriel.
 
Depois de passar palavra e feita uma incursão pela pista, tudo voltou à normalidade.
O Capitão reúne os Comandantes dos Grupos de Combate para fazerem um ponto da situação.

Já ninguém mais dormiu nessa noite.
Amanhece.
O cheiro da terra fendida e os boqueirões rasgados na picada, cheios de sede são característicos da Africa, bem diferente do nosso.
Pouca água e uma vegetação serrada, aliados ao imenso calor, contribuem para este cheiro da terra.
O 3º Grupo de Combate do Alf Lourenço Marques vai à água.
 
O furriel Marques do Obus, prepara-se para iniciar a saudação matinal de 2 ou 3 “morteiradas” do Obus 14.
A Frelimo temia esta arma e não se atrevia a grandes aventuras nas proximidades do aquartelamento.

Mais tarde viemos a saber que não era bem assim.             

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

O Cândido Sorriso de Gioconda


Sobre mim um rosto de mulher mansamente sorridente olha-me com ar profissional, como se olha uma peça de lombo de porco num talho, para avaliar o seu estado de frescura.
Eu estou estranhamente calmo também, deve ser do que o enfermeiro Costa me mandou prá veia.
Ela, que veste uma t-shirt branca em vez da parte de cima da farda, sente-me o pulso e verifica a válvula do saco de soro, mais como se seguisse um ritual do que se acudisse a uma necessidade. 

Haverei de vê-la, um dia numa bicha para o cinema em Lisboa, pôr um marinheiro KO, que lhe apalpou o rabo.
Chutou os sapatos de salto alto, um para cada lado, arregaçou a saia travada até cima, rodopiando sobre si mesma e partiu-lhe a cana do nariz com um calcanhar.
E tudo com aquele ar mansamente sorridente.
 
Agora, olhando-a a repartir a sua serena atenção pelo meu pulso, pelo saco do soro e pelo que resta da minha perna esquerda, entrapada numa ligadura mal amanhada, a sair por entre as tiras do camuflado, que parecem ter sido rasgadas criteriosamente para terem a mesma largura; agora, ali, ninguém diria que seria capaz de partir o nariz a um marujo.

Equilibra-se fazendo um bailado acrobático, à medida que o helicóptero progride, ora adornando para um lado e para o outro, ora dando solavancos que fazem estalar a maca debaixo de mim. O helicóptero tem as portas abertas e ela não parece temer ser lançada borda fora. Dança, dando pequenos paços, fletindo as pernas, passando uma, às vezes, por cima de mim, para o outro lado da maca, sem quase nunca precisar de se apoiar nas mãos, entretidas na sua função de auscultação, palpação e regulação; às vezes dando pequenos piparotes com o indicador no tubo do soro, às vezes aliviando o garrote que me aperta a coxa, às vezes pousando a palma suavemente sobre a minha testa.
 
Baixa-se para me gritar ao ouvido, tentando sobrepor-se à percussão do rotor e ao silvo da turbina do helicóptero: − Tudo bem? − Tenho frio! − É normal! E o cheiro a suor de mulher ficou um pouco a pairar à minha volta.
 
O piloto bate no separador que divide o seu cubículo do resto do habitáculo e fecha violentamente a mão direita sobre o pulso da mão esquerda em sinal de ela deve segurar-se.
 
Só agora percebo os pequenos estalidos na fuselagem do Alouette III − estamos a ser alvejados.
O piloto faz o aparelho adornar completamente, mergulhando para o lado esquerdo e eu vejo a selva ao fundo debaixo de mim.
Uma bota apenas, como um ponto de mira, a meio da porta aberta, a apontar o perigo lá em baixo e o calmo sorriso da enfermeira, agora deitada a meu lado, no chão do habitáculo, com um braço estendido para o saco do soro, passando-me por cima e o cheiro a mulher que traz um pouco de humanidade ao que resta de mim.
 
As feromonas femininas a inundar o macho ferido e a trazê-lo de volta para a vida. Pode ter sido do que o Costa me injetou na veia, mas não tenho nem medo nem pressa. Nem os impactos dos projéteis das Kalashs no helicóptero me assustam.
Aquele sorriso impávido e profissional da enfermeira e a sua atenção mais ao ato médico do que a mim, inspira-me uma segurança quase total.

Se me dissessem agora que aquela enfermeira haveria um dia de ser decapitada pela hélice de uma DO, durante uma evacuação, eu converter-me-ia a uma religião qualquer, só para pedir a deus que a poupasse.
 
Aquele sorriso quase esfíngico, quase angélico, quase humano, quase feminino; a um palmo do meu rosto, a encobrir o medo – porque decerto ela se sente, modestamente, com menos direito a ele do que eu, dedicada à sua missão de salvar, a única missão nobre que há numa guerra; aquele sorriso profissional, que inspira confiança sem violar os limites pudicos da intimidade; aquele sorriso camarada sem o humilhante paternalismo da piedade, fez renascer em mim o amor-próprio e gerar um profundo sentimento de gratidão.
 
Por isso, quando recebi a notícia da sua morte tive a cobardia dos ateus perante a impotência, face à finitude absurda da vida, e dei por mim a pedir a deus que fosse mentira, que não passasse de uma das muitas mentiras da gerra.
 
Lentamente, com o tempo, a sua imagem desvaneceu-se, o cheiro bom das suas feromonas esfumou-se e o seu sorriso que ministrava como um lenitivo, apenas na dose certa, feneceu devagar na minha memória.
 
Mas quando à minha frente, largando sangue, como se uma fita vermelha lhe saísse pelo nariz, um marujo com ar de rufia se levanta a medo do chão; quando olho para o vulto feminino descalço à frente dele, de saia arregaçada até às calcinhas com aquele ar de Gioconda, sereno, quase terno, de quem se sente na maternal obrigação de cuidar dos desvalidos, a ponto de me parecer ouvi-la dizer: "Tudo bem?... É normal!", não contive as duas grossas gotas de água que inundaram os meus olhos e toda a estrutura racional que sustenta as minhas convicções de ateu, abalaram de alto a baixo.
 
Acho que foi aí que se operou em mim a mais gigantesca transformação metafísica de toda a minha vida.
Entre acreditar que deus não existe e não acreditar que deus existe há mais que um simples trocadilho, há a memória desse cândido sorriso de Gioconda a lembrar-me quão insignificantes somos nós perante os grandes conflitos da existência.
 
A minha falta de fé deixou de ter a arrogância dos que apenas possuem certezas, sejam crentes ou ateus, para passar a ser a simples e modesta assunção da incapacidade de conter dentro de mim, este ser exíguo e perecível, o conceito absoluto e sempiterno de deus.
 
Estarei condenado a ser um limitado descrente, onde não cabe a transcendência divina, mas não nego que todo o meu ser se deslumbra com a sua beleza, enquanto entidade poética.
© Manuel Bastos (*)

Manuel Correia de Bastos, ex-Furriel Mil.º da Companhia de Artilharia 3503, esteve em Mueda (Moçambique), desde 12 de Fevereiro de 1972 até ter sido ferido em combate em 4 de Junho devido à deflagração de uma mina antipessoal.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Beijo, Pai!

Encontrei no Facebook esta "obra prima"...
Situações idênticas quantas não terá havido, por esse Portugal fora...
Paulo Lopes (de Torres Novas), certamente, que não terá sido fácil a vida sem um pai...
Espero que não leves a mal e me autorizes a divulgação do teu texto no meu blog...
Só quem passa pelas situações as pode descrever como fazes...

Bem hajas...

Paulo Lopes (Torres Novas)

 
8 de Janeiro de 2014 às 15:45
 
Pai, é certo que ficou um vazio onde muito pouco pudeste deixar, deixando mesmo assim, tanto.
 
O tanto que foste obrigado a deixar para trás em prol de uma demagogia de grandes, quando tudo o que pedias era estar, após um dia de trabalho, com a tua família, concretamente a tua mulher, minha mãe e eu, o teu filho de apenas 3 anos de idade.
 
E os teus amigos… e a tua mãe e irmãos… Para trás ficaram todos, porque foste obrigado, trocando-os pela estupidez do poder de alguns, à imagem de uma espingarda e outro armamento, para matar aqueles que mais nada faziam do que defender o que no fundo sempre foi deles.
 
Durante alguns meses a saudade certamente foi amenizada pela companhia dos outros soldados que como tu combatiam nessas terras de Moçambique e que durante o mesmo tempo foram a tua família!
 
Pai… tanto ficou por fazer, e agora a quem reclamamos, senão a Deus? Porque aos homens não vale a pena…
Infelizmente tudo o que vivi até agora, faz-me desconfiar cada vez mais deles…
 
Pai… faz hoje 40 anos…
40 anos de privação de um pai que não pediu para partir para aquela maldita terra ultramarina, sem que ali tivesse alguma coisa…
 
Pai… porque morreste numa guerra estupida, que não era tua, faz hoje, repito 40 anos…
 
Um beijo para o Céu, onde estás certamente, na companhia dos anjos, compensando-te estes com coisas que essa guerra te tirou…
 
… Do teu filho.