Partidas.
Agosto de 1967 – Outubro de 1969.
As estações de comboio deveriam ter bóias de salvação.
Lembrou-se do dia em que partiu, uma tarde quente de finais de Julho, ia para Estremoz.
Tinham sido os últimos dias, antes de embarcar para o ultramar, para Moçambique.
O Comboio aproximava-se, segurou-lhe a mão, apertou-a com força e murmurou as últimas palavras, não se recorda quais.
Bruscamente deixou-a na estação, correu para a janela e viu-a acenando até que o comboio desapareceu, engolido pela primeira curva.
Levou algum tempo a recuperar.
Agora seriam dois anos.
Não te esqueças de escrever à mãe, disse-lhe a irmã.
Tinha deixado tudo naquela estação do ramal de Lagos, tentou ordenar as ideias, conter as emoções, não conseguiu, sentiu-se como um náufrago.
As estações de comboio deveriam ter bóias de salvação.
Era domingo, o teu vestido de verão ficava-te bem.
Caminhamos juntos durante algum tempo, silenciosos.
Eram as últimas horas na tua companhia.
Na noite anterior tinham sido os últimos beijos, os últimos desejos.
Agora estava ali, parado, olhando para ti, como se fosse a última vez, como se fosse a primeira vez.
Guardei durante muito tempo o som da tua voz, o sabor dos teus beijos.
Agora, és uma imagem, uma fotografia que trago sempre comigo e onde escreveste – Nunca te esquecerei.
3 de Agosto de 1967.
Lá estava o Niassa, no Cais da Fundição em Santa Apolónia, esperando por nós, para nos levar para bem longe de tudo, de todos.
Ia-mos para terras que não conhecíamos, sem saber se voltaríamos, o bilhete de regresso era uma lotaria.
"Quem fala de partir, de despedidas….
Quantas vezes parti na minha vida,
me despedi de vez de gentes e de lugares
a que voltei para encontra-los outros…..
Nem contar posso. E às vezes despedir
foi só pisar com vã melancolia,
as ruas de cidades onde não deixava
ninguém que me lembrasse."
( Jorge de Sena )
Olhou para a G3 pendurada na cama, carregada, com o cano virado para o tecto da caserna.
Tinha o segundo carregador debaixo do travesseiro.
Estava em Nangade, lá bem no norte de Moçambique, em Cabo Delgado.
Nessa noite esvaziaram uma garrafa de Martini misturado com conhaque e fumaram maconha.
Quase três horas da manhã.
O único que ainda tinha a vela acesa era o Tavira, continuava a escrever, para a mulher, para a mãe e para a madrinha.
Era um dos que mais escrevia, era um dos que mais cartas e aerogramas recebia.
Olhou para a G3, boa altura para enfiar um tiro nos cornos, acabava ali a merda toda.
Ponto final, sem parágrafo.
Os outros que se lixassem, não tinha nada a perder, a morte seria oficializada como morto em combate.
No exército português não existem suicídios.
Teria ainda tempo de ouvir o disparo, depois, o nada, o zero absoluto.
Uma bala, uma só bala e partiria para outra viagem.
Puxou a manta para cima, tapou o nariz, o frio e a humidade gelavam-lhe os ossos.
Não deixou de fixar a G3, cinzenta, desafiava-o.
– Não tens coragem, és igual aos outros, podes escolher a cabeça, a boca.
Não sofrerás muito, será rápido e limpo, basta uma simples pressão sobre o gatilho…e Pluf, vás pró caralho, tu e os teus problemas, que pensas um dia resolver.
Então cabrão?
Despacha-te.
Levantou a mão e acariciou a coronha, sentiu o frio metálico, o mesmo frio que lhe ia na alma e que a garrafa de Martini não tinha conseguido aquecer.
Nunca tinha pensado no suicídio.
Olhou novamente para a G3.
Viu o diabo, estava fardado de camuflado.
Espetados na forquilha, à direita Salazar, à esquerda o Cardeal Cerejeira.
Dançava, rodopiava, ria.
Um rabo enorme batia contra as outras camas, afastava-se para depois voltar.
Sorria.
O suicídio?
E depois?
A G3 continuava pendurada na cama, imóvel, fria e a cheirar a óleo.
O gatilho tal como um sexo à espera de uma carícia.
Queres fazer amor chéri?
Não pagas nada, está tudo incluído, ofereço-te a bala, uma só, nunca sabemos se existirão outros pretendentes.
Sabes?
É uma bala bem portuguesa e fabricada no Braço de Prata, nada têm a ver com aquelas gajas que vêm da China, da Rússia ou da Checoslováquia.
Balas anónimas, chegam sem avisar.
Não têm graça nenhuma, não te dão a oportunidade de participares na tua própria morte.
Comigo és o dono e senhor, decides como e quando.
Então filho?
Não vou ficar a noite toda à tua espera, a olhar para ti, ou sim ou sopas.
Agarrou-a com carinho, encostou a ponta do cano ao ouvido direito, acariciou o gatilho muito ligeiramente, e ficou imóvel durante longos minutos.
Adormeceu.
Nunca mais bebo Martin misturado com Conhaque.
Nunca mais fumo maconha.
Não sou eu que estou aqui.
Dói-me a cabeça.
Que horas são?
Que dia é hoje?
Onde estou?
A caserna acorda pouco a pouco.
Tenho vontade de vomitar.
Já vomitei.
Preciso de um café, de uma aspirina.
Ó mãe… doe-me a cabeça.
"Sabia antigamente de palavras
E nelas eu dizia
Como é forçoso estar vivo
Mas não é fácil relembrar
De que espuma eram feitas
As primeiras sortidas
Alguma coisa do que eu sou e fui
Foi em viagem
Pela madrugada conforme
E nem uma vez
Deixou de repicar aos meus sentidos
A mesma toada miúda."
( José Afonso )
Em Memoria do Amável, do Biubiu, do Braga e do Guerra e de todos aqueles que morreram na guerra ultramarina.Eu, nunca me esquecerei de vocês. RIP.
Apontamentos – Portimão – Estremoz – Moçambique – (Revistos em Paris -1975 e Portimão - 2004 )
PS – Optei por utilizar o vernáculo dos apontamentos originais……por respeito a todos aqueles que viveram comigo….”aqueles “ vinte e seis meses em terras africanas.
José Nobre - Soldado Condutor - 044483/67 - Moçambique - Agosto 1967 - Outubro 1969.