quinta-feira, 15 de maio de 2014

O preço do Pão, nas "Bananeiras", por António Silvestre (CART 3503)

Transcrição do Blog "Histórias da CART 3503"

Este triste incidente marcou-me imenso, quer pela data do acontecimento, quer pela maneira como ocorreu e também por privar com alguns homem desta Companhia.

O preço do Pão
publicada por António Silvestre

Olhei para o relógio, eram 10 horas da manhã do dia 31 de Dezembro de 1973 e ali íamos nós a caminho das Bananeiras, uma dúzia de viaturas e cerca de sessenta homens, privilegiados, que tínhamos tido o bónus de ir passar a passagem do ano às Bananeiras.
O pretexto era arranjar a ponte para que a coluna, que no princípio do ano viria de Porto Amélia, conseguisse chegar a Mueda .


Isso era o pretexto, pois a finalidade principal era afastar de Mueda a maioria dos homens da 3503, companhia que em Janeiro faria 24 meses de comissão, em que a insatisfação e até mesmo a revolta já grassava tanto entre os graduados como entre os soldados.


Assim, a caminho das Bananeiras, zona a 15Kms de Mueda, famosa pelas emboscadas aí já acontecidas e pelas minas normalmente aí colocadas, seguiam cerca de 40 homens da 3503 mais 20 e tal homens da engenharia com algumas máquinas.

Os atiradores tinham por missão montar a segurança e fazer a protecção aos homens da engenharia enquanto durassem os trabalhos do arranjo da picada e da reconstrução da ponte.

Comandavam esses homens, o capitão Almeida e o alferes Silvestre, ambos da 3503, que por diversas vezes tinham levantado a voz em defesa dos homens da companhia e portanto não era conveniente estarem em Mueda no dia 1, onde estava previsto haver um almoço de Ano Novo com algumas individualidades vindas de Nampula, de Lourenço Marques e talvez até algum ministro da Metrópole, os quais faziam o sacrifício de nesse dia se deslocarem às zonas de guerra para, diziam eles, levantar o moral das tropas, algumas das quais já há quase 24 meses ali se encontravam.

Para evitar que Suas Excelências apanhassem algum susto enquanto estivessem em Mueda, a maioria das tropas operacionais eram colocadas no mato, quer em patrulhamentos afastados quer alguns próximos do arame farpado, de modo que os combatentes da Frelimo se mantivessem o mais longe possível e sem possibilidades de efectuar qualquer ataque.

Assim, além destes homens, outros elementos da 3503 e de outras companhias, foram colocados no mato em defesa afastada de Mueda e também esses estavam portanto impedidos de incomodar as altas individualidades.

Voltei a olhar para o relógio, era meio-dia e avistávamos finalmente a ponte das Bananeiras onde já se encontravam os homens de Nancatári que nos vinham reforçar enquanto durasse a nossa permanência ali.


A companhia de Nancatári, a 3501, companhia do nosso batalhão, formada juntamente com a nossa, dois anos antes em Penafiel, era portanto constituída por amigos comuns, alguns das mesmas terras da Metrópole e que embora a apenas 28 Kms de distância, as circunstâncias não permitiam que se vissem há muitos meses.
Os abraços foram muito, durante alguns minutos contaram-se histórias e recordaram-se amigos já desaparecidos.

De Nancatári tinham vindo dois pelotões, um que ficaria connosco e outro que regressaria a Nancatári imediatamente, pois o aquartelamento distava apenas 12Kms e como todo o trajecto tinha sido picado nessa manhã, decerto não tinha havido tempo para os homens da Frelimo colocarem novas minas.

Mas nessa noite era a noite de passagem de ano, pelo que ficou combinado que logo de manhã um grupo comandado pelo Capitão Almeida que não conhecia Nancatári, iria a esse aquartelamento buscar pão mole, algumas bebidas e talvez mais qualquer iguaria que nos ajudasse a passar melhor o dia de Ano Novo no mato.

Depois deles partirem ali ficámos nós, a pensar que na Metrópole a maioria das pessoas da nossa idade estavam preocupadas com o local onde iriam passar o reveillon ou com o que levariam vestido e nós ali, preocupados em organizar a defesa para o caso de nessa noite sermos atacados.

Quando o sol se pôs e se fez noite, já instalados debaixo das viaturas ou em valas, cada um de nós bem abastecidos de bebidas que tínhamos trazido para a ocasião, resolvemos festejar, sozinhos e em silêncio, outros em pequenos grupos, fomos bebendo e pensando na Metrópole, bebendo e pensando na Metrópole, pensando na Metrópole e bebendo, até que à meia noite nos esquecemos onde estávamos e alguns mais efusivos resolveram mandar algumas granadas e alguns tiros para o ar, fazendo dessa forma com que alguns animais da selva soubessem pela primeira vez nas suas vidas que aquela era a noite de passagem de ano.

A pouco e pouco os corpos foram cedendo ao cansaço e o sono tomou conta da maioria dos homens, apenas os que estavam de sentinela tinham que esperar de olhos bem abertos a sua vez de serem substituídos por outros nessa tarefa.

Seis e meia da manhã, uma vintena de homens preparavam-se para ir a Nancatári, quando um rebentamento muito próximo nos fez tomar consciência que, dia de Ano Novo ou não, estávamos na guerra e estávamos a ser atacados.
Ao segundo rebentamento apercebemos-nos que tudo se passava a dois ou três Kms de distância, o que confirmámos imediatamente a seguir quando começámos a ouvir as kalashs da Frelimo e a resposta de algumas G3.

Alguém gritou: devem ser os homens de Nancatári que nos vêm trazer o prometido pão quente.

Imediatamente os homens que já estavam preparados para ir a Nancatáti saltaram para cima das viaturas e sob o comando do Capitão Almeida arrancaram picada fora nessa direcção.

Passados dois ou três Kms depararam-se com uma situação dramática de meia dúzia de homens a tentarem sobreviver e a defenderem-se estoicamente a si próprios e a cerca de uma dezena de companheiros que bastante feridos não estavam em condições de o fazer.

A Frelimo durante a noite tinha montado um fornilho (várias minas ligadas entre si) e preparado uma emboscada para atacar os elementos que sobrevivessem às minas.


Eram uma dúzia e meia de homens que lutavam pela vida, heróis anónimos, que tinham arriscado, voluntariamente as suas vidas para levarem aos seus camaradas no mato o tão prometido pão mole e mais alguns mantimentos.

A chegada de reforços impediu que a Frelimo levasse até ao fim os seus intentos, mas já não impediu vários homens de perderem a vida e outros de ficarem feridos com mais ou menos gravidade.

O pão, esse não me lembro se chegámos a comê-lo, mas foi sem dúvida o pão mais caro de que alguma vez tive conhecimento. 
Não pagámos em escudos, nem em qualquer outra moeda, pagámos em sangue e em vidas, pois o preço final saldou-se por 4 mortos e 8 feridos.

Entretanto em Mueda as tais altas individualidades tiveram direito ao seu almoço com as tropas, tendo ao fim do dia partido novamente de avião para as suas comissões em terras do Sul, sem qualquer perigo de minas ou de emboscadas.

Partiam contudo com as consciências tranquilas, pois já podiam dizer que tinham passado um dia em zona de guerra e tinham voltado sãos e salvos.
Quem sabe, até talvez tivessem direito a mais uma condecoração.
Entretanto no mato, onde ainda ficámos vários dias, não voltámos a ser reabastecidos, pelo que nos restantes dias comemos sempre pão duro.

publicada por António Silvestre | 15:17

5 Comentários:
Awnónimo disse...
Este é o tipo de escrita que qualquer ex-Combatente entende.
Os meus parabéns ao António Silvestre.
Conheço (já lá vão trinta e tal anos) a localização das Bananeiras e Nancatari.
Um abraço pela inspiração da sua escrita.
João Azevedo
7 de Janeiro de 2008 às 15:21
Azevedo disse...
Não. Não sou um anónimo.
Estive realmente em Mueda durante 18 meses consecutivos, em colunas de segurança, constantes, num periodo de minas em que o IN pretendia atrasar a ampliação do AM de Mueda, para receber os Fiat's para a "malfadada" Nó Górdio.
Última operação em que participei, sediado no Sagal.
Fui um homem sempre da picada com o ESQ. CAV. 2 de Mueda e sei apreciar um bom texto, este que tive o prazer de publicar no "O COMBATENTE DA ESTRELA". que mereceu o maior  aplauso de todos quantos o leram. Ver www.cazevedo.com.sapo.pt . É com estes textos que se compreende a guerra que travámos.
Obrigado camarada Silvestre.
Boas Festas.
João Azevedo
Ex-Alferes Miliciano
7 de Janeiro de 2008 às 15:24
joaquim disse...
Olá camaradas de armas,sou antigo combatente estive em moçambique em Nancatari em princípios de 1974, e lembro-me bem de ter ouvido essa situação do fim do ano na picada das bananeiras.
No que diz respeito á picada de Nancatari Mueda, fiz duas picadas para lá e sei bem o perigo que representa as "bananeiras",pois fomos alvo de ataques ,e tive de rebentar algumas minas anti-carro nessa picada.
Um grande abraço para todos os ex combatentes.
Furriel mil.Dias C. Caç.4153
3 de Maio de 2010 às 22:04
Silverio, trms disse...
Também estive em Nancatari, AGO69/JUL70, CCAÇ 2450, conheço as Bananeiras e ponte do rio Mueda que a FRELIMO dinamitou em JUN70 antes da Nó Górdio, local onde 1 furriel e 1 alferes da minha companhia ficaram sem perna e pé, respectivamente, numa segurança a coluna Nampula/Mueda.
Um muito obrigado ao Silvestre pelo artigo, transcrevendo com muita realidade a situação vivida e aquilo que pensavam as "chefias" sobre a tropa de base.
Votos de bom ano.
Joaquim Silvério
Ex-furriel miliciano
3 de Janeiro de 2011 às 17:29
Inácio disse...
Apesar de já terem passado 40 anos, lembro-me perfeitamente desse tragico incidente. Estava em Muirite, local onde pessoal de Nancatari ia receber as colunas que vinha da da picada de Montepuez,a fim de as acompanhar ate Mueda. Por termos privado algumas vezes com pessoal desta companhia ao recebermos a notícia, ficámos em choque.
Um abraço para o pessoal de Nancatari.
5 de Abril de 2014 às 15:27



  • José Caseiro Pedro Inácio Eu sou da C.ART. 3503 por acaso eu não fui para as bananeiras na passagem de ano de 73 para 74 porque tinha saído para o mato no dia 25 de Dezembro, dia de Natal e andei três dias lá, embora a maior parte do pessoal fosse do meu pelotão, mas ao fim de dois anos de Mueda, ali já não havia pelotões, era o pessoal que estava disponível. Quanto ao acidente saber que tinham morrido amigos quando estava-mos quase no final da comissão foi chocante, mas esta companhia ainda veio a ter mais azares depois deste, quanto ao Silvestre é um amigo do coração, um irmão é tudo que se possa dizer de um ser humano nosso amigo.

  • terça-feira, 13 de maio de 2014

    UMA FATÍDICA missão, Mendire-rio Mulanga, por Joaquim Coelho


    Mais um testemunho...

    UMA FATÍDICA missão – Mendire - rio Mulanga

    Passava da meia-noite quando a tropa procurava a melhor posição para um curto descanso, antes de regressar ao acantonamento de Napota.

    Com mais de 26 horas de marcha até ao vale do rio Mulanga, onde assaltamos um acampamento com guerrilheiros que deram luta, os corpos mereciam repousar e recuperar energias. 

    Foi um dia de sede danada; alguns soldados, mal puseram as mochilas no chão, encontraram dois potes com água, casualmente ali à sua mercê.
    Reserva do inimigo, só podia ser! 
    O tilintar dos cantis em busca de um bocadinho do precioso líquido levou outros a precipitarem-se na direcção do milagroso oásis. 
    Houve alarido, enquanto tentavam apanhar algumas gotas.

    Inesperadamente, dois ou três tiros disparados do exterior daquele largo, deixaram toda a gente em sobressalto. 
    Alguns dos pára-quedistas que estavam a tentar recolher água atiraram-se para o chão e outros rastejaram para fora do centro da zona pelada, temendo o rebentamento de granadas atiradas pelo inimigo. 
    Pois era o inimigo que estava ali, mesmo a rondar o poiso provisório.
    Passada a surpresa do ataque, os gemidos fizeram ouvir o pedido de socorro! 
    Três soldados prostrados no chão; um morto e dois gravemente feridos, já sem reacção nos corpos ensanguentados. 

    Situação confusa e insegura, porque havia pára-quedistas desarmados e fora da zona de reunião, que limitavam a acção dos que mantinham a segurança. 
    Então, o capitão avisou:
    - Todo o pessoal que está fora, salte já para junto das respectivas equipas.
    E logo se ouviram os corpos a rastejar com rapidez. 
    As equipas de segurança, abriram fogo em círculo, tentando apanhar algum dos guerrilheiros que haviam disparado. 

    Os enfermeiros tentaram reanimar os dois feridos, enquanto se constatava a morte do terceiro atingido friamente. 
    O local não oferecia segurança, porque não tinha pontos de abrigo. 
    O capitão mandou providenciar a remoção do morto e dos feridos para um local mais seguro. 
    Cortaram-se alguns ramos de árvores para, com as lonas das tendas, improvisar macas; os enfermeiros injectaram coraminas e coagulantes nos feridos, além de improvisarem a administração de soro. 
    Um dos feridos começou a mexer a cabeça e perguntou o que estava a acontecer! 
    O enfermeiro deu-lhe duas palavras para acalmar!

    Mais de setenta pára-quedistas, cansados, amargurados, seguiram mais para norte, transportando o infortúnio cravado nos corpos em luta contra a morte. 
    Uma grande "machamba" com um milheiral viçoso serviu de poiso àqueles valentes do mato. 

    O capitão decidiu que ali ficasse um pelotão com o morto e os feridos, até serem evacuados, provavelmente no dia seguinte. 

    Os outros dois pelotões continuaram a marcha até ao acantonamento de Napota, onde tinham possibilidade de comunicar via rádio com o comando de Mueda e providenciarem a vinda do helicóptero para evacuação e aviões para cobertura e segurança do pelotão sitiado. 
    Assim se fez, e o pelotão destroçado ali ficou à espera de socorros...
    Durante a noite manteve-se um extenuante esforço para reanimar os feridos, já que o morto estava em paz! 

    O Botelho ia preparando os frascos de soro que o Valente segurava na mão direita, enquanto o enfermeiro transferia o tubo da agulha para o novo frasco da nossa esperança. 
    Eram quatro horas da manhã quando as aves vindas da mata ensaiavam os primeiros gorjeios. 
    O corpo do Madriana estremeceu, respirava com muita dificuldade. 
    As pulsações imperceptíveis e o sinal da morte atemorizaram os socorristas. 
    As injecções de coramina não estavam a resultar e as hemorragias internas não foram estancadas. 
    Na agulha encravada no braço já não circulavam gotas de soro, nem se detectava a cana da veia para meter outra agulha. 
    Num arremesso de desespero, o Botelho tirou a navalha do bolso, passou os dedos pela lâmina, dizendo ao enfermeiro que só puxando a veia do pulso para fora se poderia meter a agulha. 
    O enfermeiro segurou o braço esquerdo do moribundo, com o bico da lâmina e o Botelho conseguiu enfiar a agulha. 
    Do frasco caíram algumas gotas, numa lentidão de recusa à vida! 
    Entre os dois socorristas cruzaram-se olhares de esperança. 
    Mas as gotas pararam de correr e o corpo definhava a olhos vistos. 
    A uma nova tentativa para injectar soro, o corpo já não reagiu e esmoreceu definitivamente. 
    Não tinha sinais de vida!

    O sol começou a aquecer quando se esgotou o sangue nas veias do ferido e este se finou perante os olhares incrédulos dos presentes. 
    Apesar das tentativas para o manter vivo, as hemorragias internas determinam o fatal desfecho. 
    O enfermeiro, desalentado, sentou-se no chão. 
    O dia nasceu lentamente, mas o corpo do Madriana já não respirou o ar da manhã. 

    Ainda com as lágrimas suspensas, perguntámos ao Deus omnipotente, porque deixou morrer jovens naquelas condições. 
    E nem a bondade do Senhor nos deu resposta! 
    Os corpos jazem mortos e inocentes.

    O desânimo era total entre aquele pequeno grupo de homens bem preparados para a guerra, mas incapazes perante a morte. 

    A desafortunada vivência piorou quando o outro ferido começou a sentir-se desprotegido contra a sanha da morte que o rodeava; e lançou uma exclamação que aumentou a nossa inquietação:
    - Meus irmãos, vejo que está próxima a minha vez, mas só vos peço que não me deixeis nesta terra longe dos meus pais.
    Os efeitos da sede já enevoaram os registos do cérebro e os olhos deixaram de enxergar os perigos que se ocultam na mata... é sempre em frente!
    O Gomes tremia muito, perante a triste realidade dos mortos que definharam a seu lado. 
    Mas não tremia de medo... porque a morte passou e poupou-lhe a vida nesta última viagem! 
    Mas o sangue que se escapava da ferida aberta no seu peito era uma grande inquietação. 
    Os borbulhões vermelhos fragilizam a coragem de qualquer corpo ferido. 
    E a alma sentia-se ameaçada pela perda do seu suporte num corpo em sofrimento; por isso, tinha que tremer... 
    O corpo do Gomes tremia e cobri-o com a manta; mas o calor do sol era forte! 
    Um absurdo de remédio!

    A fome e a sede perturbam a lucidez, como é natural; e alguns sentiam os efeitos das alucinações que os levaram ao delírio! 
    Era preciso procurar meios de sobrevivência, porque as rações e a água acabaram no dia anterior. 
    Passava do meio-dia e não havia sinais de apoio aéreo, nem de quaisquer outros meios. 
    Os sitiados pára-quedistas, desalentados e fracos, cada um a seu modo, procurava proteger-se do sol abrasador, cortando milheiros para se cobrir atrás dos minúsculos peitoris de defesa escavados na terra dura.

    O sargento Botelho chamou o prisioneiro que se dizia ser capitão Simango da Frelimo. 
    Foi apanhado nas proximidades de Pundanhar e entregue no aquartelamento de Nangade. 
    Servia de tradutor, mau grado a nossa desconfiança. 
    Era legítimo que obrigasse o prisioneiro a indicar onde haveria melancias ou outros frutos, uma vez que conhecia a zona. 
    Mas o capitão Simango só aceitava ajudar na procura de alimentos se lhe déssemos uma arma para as mãos - dizia ter medo dos ataques e não poder responder! 
    O aparente sossego contrastava com o desânimo que se abateu sobre os dezoito homens que ainda restavam do pelotão, com condições de reagir. 
    Não havia tempo a perder e foi combinado entregar uma arma ao prisioneiro, mas ser o sargento a transportar o carregador. Ainda foi feita uma recomendação:
    - Meu caro capitão Simango, se tiver o azar de fazer algum gesto ameaçador, será morto imediatamente, porque vai seguir na frente das nossas armas.

    Foram quatro homens famintos à procura de alimento. 
    Passados mais três campos de milho, lá apareceram as melancias verdes que fizeram sorrir os olhos. 
    Cada um colheu as que pode guardar dentro do camuflado, em redor do corpo viscoso de suor. 
    E logo regressaram, para matarem a fome e a sede que era causa de desespero nas cabeças de alguns mais frágeis. 
    Pois, nem todos têm a mesma resistência ao impiedoso calor e à tragédia que se abateu sobre aquele punhado de homens abandonados no meio da mata, à mercê da sua sorte.

    Norte de Moçambique - Cabo Delgado - Um Inferno - mil novecentos e sessenta e picos...

    Autor Desconhecido

    sábado, 10 de maio de 2014

    Companhia sofre uma baixa na primeira saída, por Carlos Paiva (CART 2918)

    Companhia sofre uma baixa na primeira saída

    A Companhia de Artilharia 2918 foi enviada para Diaca, no distrito de Cabo Delgado, bem no centro do planalto dos Macondes, entre Mueda e Mocímboa da Praia, em Moçambique. 
    Eu era o comandante do 1.º pelotão.


    Chegámos a Diaca em 21 de Junho de 1970 – e no dia 1 de Julho começava a Operação Nó Górdio, que foi, sem a mais pequena dúvida, a maior acção militar jamais lançada em toda a Guerra Colonial.
    Tínhamos apenas 10 dias de Moçambique. 


    O meu pelotão e o 3.º pelotão largaram às cinco horas da manhã daquele 1 de Julho, integrados na Operação Nó Górdio, com ração de combate para três dias. 
    Seguimos rumo ao Rio Muera, passando pela ‘curva da morte’ – onde eram frequentes as emboscadas montadas pelos guerrilheiros da Frelimo.

    O comandante de companhia, o nosso capitão Simões, ia connosco – para nos dar a confiança necessária aos primeiros tempos de uma guerra que desconhecíamos. 
    Seguíamos em silêncio absoluto. 
    Avançávamos pela picada em fila de pirilau, atrás uns dos outros, com muito cuidado, olhos bem abertos, armas prontas a disparar, dedo no gatilho. 
    Era preciso ver aonde pisávamos para evitar as minas. 
    A atmosfera era pesada. 
    De quando em vez, arrepiávamos-nos com os guinchos dos macacos.
    Tínhamos andado uns quatro quilómetros quando detectámos a primeira mina antipessoal.

     

    A fila imobilizou-se. 
    Os soldados dobrados sobre as G-3 perscrutavam atentamente qualquer movimento estranho. 
    Não levávamos o equipamento para rebentar minas – que ficara esquecido no quartel. 
    À falta de melhor solução e com a ingenuidade da altura, eu próprio rebentei a mina com um tiro de G-3. 

    Chegados à ‘curva da morte’, virámos à esquerda, em direcção ao Rio Muera.

    Dois quilómetros mais à frente, parámos para pernoitar ali mesmo. 

    O dia seguinte começou cedo. 

    Coube ao meu pelotão a tarefa de começar a “picar” à procura de minas. 

    Avançámos poucas centenas de metros quando, de repente, se ouviu um grande estrondo: um soldado caiu – e todos os outros, em instinto de defesa, atiraram-se ao chão e dispararam rajadas para a mata. 
    O soldado contorcia-se com dores: cerrava os dentes nos lábios e tinha os olhos fechados e rosto sujo de terra e de trotil. 
    Na extremidade de uma perna, apenas se viam fragmentos e tendões destruídos por uma mina: um pé tinha desaparecido.


    Era o soldado José Joaquim Guerreiro da Silva – a primeira vítima da companhia. 
    O cabo enfermeiro tentava minorar-lhe as dores com injecções de morfina. 

    Pedimos por rádio uma evacuação urgente. 

    Enquanto o helicóptero não chegava, os fumadores puxaram dos cigarros LM.

    Passados cerca de 20 minutos, ouvimos um ronco no ar que se aproximava. 
    Era o helicóptero. 

    Nós já tínhamos preparado na picada um local para a aterragem. 

    O ‘heli’ pousou, carregou a primeira baixa da nossa companhia e levantou voo atirando poeira e vento para todos os lados.

    "AGORA OS MEUS DIAS PASSAM DEPRESSA DE MAIS"
    Carlos Paiva nasceu em São Martinho de Mouros, no concelho de Resende, distrito de Viseu. 
    Fez o curso liceal num colégio interno. 
    Quando passou à disponibilidade, em Setembro de 1972, ficou por Lisboa. 

    “O meu primeiro emprego, em Janeiro de 1973, foi no Ministério da Educação, como 3.º oficial”, recorda Carlos Paiva. 
    Em Setembro, casou-se e, em Julho do ano seguinte, entrou para o Banco Pinto e Sotto Mayor. 
    O casal tem duas filhas. 
    Hoje, Carlos Paiva está reformado da banca, onde trabalhou durante 30 anos. 
    Vive com a mulher no Feijó, na Margem Sul do Tejo. 
    O casal tem duas netas. 
    “Não há dúvida de que melhor que ser pai é ser avô. 
    Agora, sucede o contrário de outros tempos: os dias passam depressa”, diz.

    A MINHA GUERRA
    Carlos Paiva.
    Companhia de Artilharia 2918. 
    Moçambique (1970-1972). 
    Hoje, aos 59 anos, no Feijó, Margem Sul do Tejo.

    NOTA
    Os leitores do Correio da Manhã podem agora contar-nos as suas histórias de guerra – em Angola, em Moçambique ou na Guiné. 
    Queremos ouvi-las. 
    O CM publica as melhores. 
    Contacte-nos por telefone (213185200), mail (historiasdaguerra@correiomanha.pt) ou carta (Avenida João Crisóstomo, n.º 72, 1069-043 Lisboa).

    quinta-feira, 8 de maio de 2014

    GUERRA COLONIAL: RELATOS NA 1ª PESSOA - “Mário Marinheiro” em Moçambique


    Personalidades e Tradição | 21-04-2009

    GUERRA COLONIAL: RELATOS NA 1ª PESSOA
    “Mário Marinheiro” em Moçambique

    In Notícias de Vila Real

    Pelo olhar ainda lhe perpassa uma certa saudade dos tempos da guerra. 
    Foram tempos difíceis, muito duros, diz, mas ressalta o sentimento de camaradagem, o espírito de sacrifício, a dureza das operações e muita saudade dos camaradas que lá morreram. 

    Depois da instrução e especialidade, seguiu-se o embarque no velho paquete Niassa. 
    Era o dia 20 de Agosto de 1970. 
    Nele seguia Mário Augusto Rodrigues, um dos militares portugueses de entre o milhão que passou pela guerra colonial. 
    Nela morreram mais de oito mil jovens. 
    Foram 35 dias de mar, desde Lisboa até Porto Amélia. 
    Desta cidade, seguiram em coluna militar até Mueda, em Cabo Delgado, depois de passarem por Montepuez e Nancatári. 
    A companhia de Caçadores 2730 foi destinada ao “coração da guerra”, no planalto dos Macondes.

    Foram dezoito meses de ininterrupta actividade militar, quando se aproximava o fim da guerra por se estar à vista a data de 25 de Abril de 1974. 
    Mas, em Moçambique, a guerra vinha-se intensificando, a avançar para sul, e para o interior na província de Tete. 
    Das suas palavras bebemos a preocupação pelos que embora tenham regressado, estão desfeitos pelas consequências psicológicas, os traumas da guerra. 
    Alguns, refere com tristeza, “nunca mais recuperaram, são autênticos farrapos humanos.” 
    Daqueles tempos ficaram muitas amizades que ainda se mantêm, decorridos quase quarenta anos.

    NÓ GÓRDIO
    Recorda com uma exaltação contida a operação Nó Górdio, realizada no planalto dos Macondes. 
    “Foram 35 dias no mato, a comer o que calhou, a dormir mal, sempre em contínuo sobressalto,” refere com emoção e também algum orgulho à mistura por ter participado nessa tão falada operação. 
    Planeada por Kaúlza de Arriaga para desalojar a Frelimo do planalto, mobilizou milhares e de homens dos três ramos, tropas de elite e muitos meios materiais, desde viaturas, a helicópteros e aviões.

    O resultado terá sido um tanto pobre para a grandeza dos meios utilizados, mas marcou uma fase importante da guerra em África. 
    Sobre ela se escreveram livros, romances e outras obras de estudo sobre a guerra colonial portuguesa. 
    E Mário Augusto Rodrigues, nascido em Celeirós do Douro, concelho de Sabrosa, há sessenta anos exibe com orgulho pátrio as fotografias da tomada da base Gungunhana, na dita operação Nó Górdio. 
    Ou as fotos de prisioneiros capturados, de armamento apreendido, da vida dos militares no mato ou no aquartelamento. 
    E as operações, muitas, flúem à sua memória com naturalidade. 
    Depressa se adaptou às extensas matas de Moçambique, ele que estava habituado aos socalcos do nosso Douro.

    Vai lembrando os camaradas que morreram numa e depois noutra operação. 
    Enquanto fala connosco, pelas suas mãos passam muitas fotografias, algumas de militares feridos, de evacuações. 
    Para a história ficaram também registados os momentos de explosão de minas anti-carro e pessoais em que Mário Rodrigues se tornou um especialista. 
    Executava com tal mestria e sangue frio este trabalho que desta actividade veio a ser recompensado monetariamente, quando numa das vezes saiu do mato para vir passar uns dias de férias a Lourenço de Marques.

    MORRER NA GUERRA
    Foi ferido três vezes em combate, tendo sido evacuado do teatro de operações. 
    Foram ferimentos relativamente ligeiros, mas que mostram bem a sua sorte. 
    Diz que o próprio comandante da Companhia gostava de ir perto dele, por se sentir protegido. 
    Acredita piamente, que uma mãozinha de Nossa Senhora andava sempre a rondar à sua volta para que nada lhe acontecesse. 
    Até o capelão, Padre Vilela, de Vilarinho da Samardã, seu amigo e confidente, saiu com ele uma vez para o mato, para medir o risco das operações.

    “Mas quis ir ao pé de mim, e no fim disse que imaginava que aquilo era duro, mas não pensava que fosse tanto.” 
    Teve a sorte de estar de férias aquando da realização de uma operação em que o seu pelotão foi violentamente atacado e sofreu vários mortos e feridos. 
    O próprio furriel que o substituiu ficou gravemente ferido. 
    Aliás, da sua companhia, de 120 homens apenas 70 nada sofreram.

    Foram vários os mortos durante toda a comissão e muitos mais os feridos, conforme consta do historial da companhia. 
    Mas nem tudo era combate e tristeza. 
    Havia momentos de tudo. 
    E, com o seu jeito especial, lá ia organizando e participando, com outros, em festas e teatros. 
    Chegou a apresentar um espectáculo, em Lourenço Marques, com uma apresentadora profissional, na despedida da sua unidade das terras do Ultramar.

    DEIXAR RASTO, FAZER HISTÓRIA
    A Companhia de Caçadores 2.730 deixou rasto em Moçambique e muitos desses sinais foram assinados pelo vila-realense, Mário Augusto Rodrigues. 
    Os seus actos de coragem e heroísmo foram registados pelos seus superiores em vários relatórios das diferentes operações. 
    A forma como comandava os homens sobre as suas ordens mereceu o elogio do seu comandante. 
    E também o seu sangue frio, o seu espírito de sacrifício, nomeadamente nos rebentamentos das minas, foram registados para a posteridade nos relatos das operações.

    “Os louvores eram importantes, mas a mim interessam-me mais as menções nos relatórios das operações.” Relatos que guarda às dezenas, onde se pode ler a forma como as operações decorreram, os resultados, os ataques, os mortos e os feridos. 
    O regresso teve lugar no início do verão de 1972, com chegada a Lisboa, à capital do império em 30 de Junho.