sábado, 1 de junho de 2019

Insónias..., por José Nobre

Insónias.
Navego, entre uma e outra recordação, as de ontem e as de agora, passageiras de um navio fantasma, perdido na bruma da minha imaginação. Revejo os dias, as noites, as madrugadas, embriago-me na brisa das memórias, na maré do passado. A chama da vela vacila, projectando nas paredes as sombras do que somos. Escrevo e volto a escrever, rasgo as folhas, transformo-as em bolas de papel, pontapeia-as para debaixo da cama e recomeço. Só escrevo merdas.
Quatro horas da manhã, aqui o dia chega mais cedo. Não sei se a garrafa de Brandy vai aguentar esta minha insónia, fixo-a, meio vazia, desafiando-me, ao lado da imagem da Nossa Senhora, não sei se é a da Fátima ou de outro local qualquer, mas isso não tem qualquer importância, as Nossas Senhoras são todas iguais e brancas, ainda não vi uma negra. Escrevo, escrevo e volto a escrever. Posso contar-te histórias, declamar-te poemas, dizer que não me esqueci, que não te esqueci. O Tavira é o que ressona mais, se o ressonar fosse uma arma, já tínhamos ganho esta merda de guerra, esta guerra que nos impuseram, que nos obrigam fazer, nós que só temos vinte anos. Vou rasgar esta folha e fazer mais uma bola de papel.
- Marroquino, apaga a vela.
- Eu apago a vela e tu não te peidas mais.
( Muidumbe – Cabo Delgado – Moçambique – Madrugada de 23/24 de Novembro de 1967 )