quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Daniel - O Maconde, Filho da Teresa - Maconde..., por José Nobre

 

Nunca Atirei Pedras Aos Cães.
Muidumbe - Cabo Delgado - Moçambique - Dezembro de 1967.
Daniel - O Maconde. Filho da Teresa - Maconde.

Não sei como começar esta história. 
Pelos nomes do miúdo e da mãe? 
Penso que sim. 
Os nomes foram dados por nós, ou seja pela malta do pelotão de comandos.

Quando cheguei a Muidumbe em Outubro de 1967, já o Daniel, que ainda não se chamava Daniel, e a mãe Teresa que ainda não era Teresa, comiam o que restava do "rancho", dado pelos cozinheiros e pelo restante pessoal. 

Muidumbe era um aldeamento de velhos e velhas, os novos tinham desaparecido, tinham optado pela Frelimo, pela liberdade do seu povo, tinham optado pela luta contra a tropa, tinham desaparecido no mato.

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Fazia-nos pena o puto. 
Andava nu de caserna em caserna, estendia a mão quando queria qualquer coisa e sorria. 
A mãe aparecia antes do anoitecer, levava-o para a palhota e só aparecia no dia seguinte, à hora do café e do pão. 
Um dia o "madeirense", o cabo mecânico, teve uma ideia que mudou o rumo da vida do Daniel.
Nobre, temos de saber como é que este puto apareceu. 
Aqui só há velhos e velhas, alguém teve de engravidar a Teresa. 
Já perguntei ao Pedro maconde, mas o gajo diz que não sabe, diz que quando veio de Palma para aqui já o puto tinha nascido. 
Se ninguém sabe, vamos perguntar à Teresa,
Mas ela não fala português, disse o Quintela. 
O Pedro maconde traduz, respondeu o "madeirense"....e assim foi.

Não chegamos a nenhuma conclusão, mas tomamos uma decisão. 
A partir daquele dia o puto dormiria na caserna do pelotão do comando. 
Pela aparência o Daniel deveria ter uns dois anos, nem a idade conseguimos saber. 
O "Sorna" de Olhão é que deu a idade....tem dois anos e não se fala mais nisso. Então e o nome? 
Nessa noite, depois do jantar, ficou resolvido, o nome seria Daniel. 
Hesitamos entre Daniel e Miguel, mas ganhou o "Beiçolas" de Montenegro(Faro), que tinha um irmão que se chamava, Daniel. 
Encarregamos o Pedro maconde de dizer à Teresa que a partir daquele dia o Daniel dormiria na nossa caserna....E assim foi.

Então e a roupa? Sem problemas. 
Havia uma caixa de costura no armazém da manutenção e o "Pé de Chumbo", ou seja o Lopes, que era o mais gordo da companhia e talvez de todo o norte de Moçambique, tinha uma queda para a costura. 
De umas das nossas cuecas fez umas para o puto e também fez uns calções de um pedaço de tecido, que antes tinha sido um saco de viagem. 
Vestimos o Daniel e fomos mostrar a nossa obra ao Furriel Gonçalves. 
Desatou a rir, mas já não riu quando lhe dissemos que o Daniel passaria a dormir na nossa caserna.
Vocês são doidos, disse. 
Acertou.

Falta contar o porquê da fotografia. 
Nessa noite o Daniel comeu com a tropa e o que havia para comer, era ração de combate. 
Comeu, comeu, comeu, bebeu duas latas de sumo de laranja e adormeceu, na cama preparada no chão junto à cama do "Beiçolas".

Acordamos todos ao mesmo tempo, com os gritos do Quintela. 
Tinha acordado para ir mijar à vala, era quase de manhã. 
Isto só cheira a merda, gritava, mas quem foram os cabrões que tiveram esta ideia, a caserna está toda cagada. 
Na verdade estava. 
No corredor entre as camas, havia um fio de diarreia, o Daniel tinha feito o que fez e adormeceu de novo, sem chatear ninguém. 
Tinha sido bem sucedida a primeira noite do Daniel, na caserna do pelotão de comandos. 

Continuou a dormir e a comer com a tropa. 
Eu e o Moreira saímos de Muidumbe no inicio do mês de Março de 1968, o Daniel lá ficou. 

Hoje, se for vivo, tem cinquenta e poucos anos, nunca irá ler esta história.

( Na foto estão, da esquerda para a direita - Madeirense - Quintela - Zé-Nobre - Ao centro o Daniel) - O banho do Daniel, na manhã da primeira noite passada na caserna do pelotão de comandos - Ficou a cheirar a Lavanda o perfume que roubamos ao Chico dos chouriços, que era o corneteiro).
Apontamentos de Outubro de 1967 a Agosto de 1969.

Este texto é fruto da minha imaginação. 

Eu, nunca estive em Moçambique e muito menos na guerra. 

Nunca conheci, nem o Quintela, nem o Madeirense, nem o Daniel( que não se chamava Daniel) mas esse é um simples pormenor. 

Acabo de saber também, que não sou eu que estou na foto. 

Abraço a todos.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Resposta a um "companheiro" de guerra..., por José Nobre

 José Nobre

16/11/2020

Resposta a um "companheiro" de guerra....daqueles companheiros, os quais pensam que a portugalidade teria de ser forçosamente colonial.

Traidores?
Mas traidores de quê?
Em relação a quê?
E em que circunstâncias?
Apelidados de Traidores são sempre aqueles que lutam contra (o que outros pesam ser justo.)
Traidora foi a chamada "nossa" Pátria chamada Portugal, a qual deixou em terras africanas, milhares de soldados, sepultados numa qualquer sanzala, num qualquer terreno baldio, num qualquer cemitério africano (hoje abandonados).
Traidores e assassinos, são aqueles que enviaram para a morte, soldados formados em 5 ou 6 meses, os quais conheciam tanto de África. como eu conheço da Indochina....
Traidores são aqueles que nos deixaram abandonados num qualquer porto de Lisboa, no dia do regresso.....
TRAIDORES....que nem se preocuparam com o futuro de jovens, os quais viveram em 3 anos ...o que muitos não vivem em 30 anos.
Traidores são aqueles, os quais em nome de umas quantas famílias, detentores da riqueza africana....Minas, Explorações agrícolas, etc, etc, etc.. exploravam um povo.....escravizavam um povo.....branco em Portugal....negro em terras africanas.
Caro companheiro, traidores são aqueles, que em nome de uma ideologia (seja ela qual for)...mas neste caso salazarista) ...massacraram, escravizaram, e enviaram para a morte, muitos jovens portugueses.
Pergunto eu: O senhor perdeu algum filho na guerra ultramarina?
Ou algum parente? Ou algum amigo? Ou algum camarada de caserna? Se perdeu.....e se ficou calado é porque não tem Alma....e muito menos sentimentos, ou seja o senhor é um chamado Zombie....e estou a ser educado.
Para finalizar, direi que a vida dos meus quatro camaradas, mortos numa emboscada, no dia 11 de Março de 1968, numa picada entre Nangade e Pundanhar, valiam muito mais do que uma qualquer "chamada" província ultramarina....Eu sei, que a idade....muitas vezes nos perturba a mente......Mas inconscientes são aqueles que não aceitam o normal...."andamento" da história, das civilizações....Eu sei....que nada sei.
Bem Hajam.
José Nobre - Soldado Condutor - 044483/67 - Lourenço Marques - Muidumbe - Mueda - Miteda - Nongololo - Nangade - Pundanhar - Palma - Moatize - Tete - Cassacatiza - Bene - Zobué e também em muitos Cús de Judas....dos quais já me esqueci dos nomes.

 José Nobre 

20/11/2020

Moatize - Zambézia - Moçambique. 
( A data está neste precioso documento. )

Se guardei tudo? 

Claro que guardei, até documentos e fotos que não posso divulgar. 

Existem fotos, ou existiam, de uma "passagem de modelos" ....claro que nús......que fizemos na caserna em Tete....era de tal maneira que, quando fomos à loja do fotógrafo, o único que havia em Tete, para fazer a "revelação" das ditas cujas, e ele nos perguntou qual era o conteúdo do "rolo fotográfico".....foi a muito custo que o senhor aceitou o trabalho.

Nenhuma descrição de foto disponível.


Mais uma, como dizia o meu amigo( irmão ) Fernando Moreira. 

Claro que comecei o ano de 1969....Careca. 

E porquê? 

Porque na noite anterior tinha "apanhado uma bezana" daquelas que deixam mossa, fora do aquartelamento e depois até altas horas da noite na caserna.

Bebemos tudo o que havia para beber, fumamos tudo o que havia para fumar, falamos do filme pornográfico que tínhamos visto na noite anterior, no barracão de um civil, ( funcionário da mina de carvão de Moatize) o qual arredondava o final dos meses com a projeção de filmes (mudos)....

Muitas das vezes éramos nós que fazíamos os diálogos em direto, como se fosse um relato de FUTEBOL - Cinco escudos cada um. 

A guerra, mas qual guerra? 

Guardarei para sempre, o som das gargalhadas, do Carromeu, do Augusto, do Quintela. do Nelson, do Moreira, do Monteiro e de todos os outros.....de todos aqueles que faziam parte do pelotão do Comando. 

Mesmo aqueles que não sabiam rir, aprenderam a faze-lo com as gargalhadas do Pinto - corneteiro.

As Buganvílias de Cabo Delgado..., por José Nobre

 

José Nobre

23/11/2020
Recordações em tempos de Covid.

Nunca Atirei Pedras Aos Cães.
Moçambique – Agosto de 1967 – Outubro de 1969.
As Buganvílias de Cabo Delgado.

Cheguei a Muidumbe em finais de Outubro de 1967, depois de ter estado em Lourenço Marques, durante dois meses. 

Passei do oitenta para o oito. 
Agora sim, estava na zona de guerra, em pleno Cabo Delgado, na fatídica zona de Mueda. 
Voltei, voltamos, muitas vezes a Mueda, era lá que nos íamos reabastecer e foi nessa picada, entre Muidumbe e Mueda, passando por Miteda e Nangololo, que sofremos as primeiras emboscadas, que levantamos as primeiras minas e onde sentimos o medo, para o qual não estávamos preparados. 

Por estranho que pareça, não anotei a data da primeira emboscada. 
Sei que foi em Novembro. 
Passamos Nangololo, lá onde a tropa dormia dentro de uma igreja, um altar limpo e florido, o único local que estava limpo dentro daquela igreja, o resto eram camas, malas, caixas de ração de combate, armas, granadas......e o Senhor crucificado, numa cruz de pau-preto, olhando para todos aqueles que deambulavam de um lado para o outro, que escreviam cartas e aerogramas, sentados nos degraus do altar e que dormiam, por vezes, dentro do confessionário. 
De religiosos, nem sinal, zarparam todos para Mueda, ao primeiro sinal de perigo, deixando a igreja entregue aos militares. 

Pela primeira vez vi uma igreja em autogestão, cada um rezava quando queria e como sabia. 
Era estranho, mas quando chegávamos a Nangololo, muitos de nós, pelo sim e pelo não, lá íamos rezar, uma oração ou outra, aos pés do Cristo, pregado numa cruz de pau preto.

Depois arrancávamos em direção a Miteda.
Motores em marcha, e os nossos camaradas, sentados nos bancos dos unimogues, ou em cima da carga das berliets, armas em riste e o olhar no capim que circundava a picada. 
Lama e mais lama, horas e horas para percorrer, trinta quilómetros até Miteda.
Chovia nessa manhã. 
O Pedro maconde, o pisteiro, ia a meu lado, sentado no unimogue, olhando para a picada, para as árvores, tentando descobrir o mais pequeno sinal de perigo. 
Ele, já tinha feito aquele percurso, dezenas de vezes, com outras companhias militares que nos antecederam em Muidumbe, conhecia aquela picada, como a palma das suas mãos.

Ouviu-se o primeiro tiro, as viaturas pararam, saltamos para a picada e o arraial começou. 
Não levei a minha G3, quando saltei da viatura, abriguei-me por detrás do rodado da viatura e assim fiquei, quase paralisado, era o meu baptismo de fogo, a primeira vez que ouvia o som das armas do inimigo. 

O Pedro maconde, aproximou-se, rastejando, e perguntou-me. 
Onde está a arma do tropa? 
Disse-lhe que a tinha deixado na viatura. 
Foi busca-la e entregou-ma. 
Não disparei uma única bala. 
Ouvi-as a bater na carroçaria das viaturas, a assobiarem, ouvi o som das nossas granadas e da metralhadora que estava montada na Berliet, rebenta-minas. 

O radio-telegrafista, tentava entrar em contacto com Mueda, tentava dar as coordenadas do local da emboscada. 
Durou minutos que pareceram horas. 
No final tivemos quatro feridos, um deles com muita gravidade, uma rajada de metralhadora nas pernas e o meu camarada Quintela, ele que sempre me acompanhou, desde a recruta , com um tiro numa nádega e os outros dois, com pequenas escoriações, provocadas pelo salto que deram para a picada, quando a emboscada começou.
Voltou o silêncio. 
Pesado. 
O enfermeiro tratava do ferido mais grave, o telegrafista pedia a Mueda, o envio urgente de um Heli, para a evacuação dos feridos. 

Nós, depois de muitos minutos, em que não se ouviu um tiro, começamos a fazer o reconhecimento do local. 
Começamos a limpar uma zona para o Heli pousar. 
Vinte minutos depois, ouvimos o som do motor do Heli e os nossos camaradas foram evacuados. 
Um deles nunca mais o voltamos a ver, faleceu no hospital de Mueda. 

O Quintela foi transferido para o hospital de Nampula e só voltou à nossa companhia militar, quando já estávamos em Moatize, quase um ano depois. 
Não é fácil ver um camarada estendido na picada, enquanto o enfermeiro tenta estancar o sangue e lhe dá uma dose de morfina, para não sentir as dores.

Depois da emboscada, dormimos em Miteda.
No dia seguinte arrancamos para Muidumbe, lá onde as buganvilias, nasciam, cresciam por todo o lado. 

As vermelhas eram as mais bonitas, encostadas à nossa caserna, regadas e mimadas por todos. 
O vermelho, no verdejante vale de Muidumbe, lá onde envelhecíamos, pouco a pouco. 

Muitos anos mais tarde, tive bouganvilias no quintal da minha casa, vermelhas, como as de Muidumbe.

( Apontamentos – Muidumbe e outros locais – Moçambique – Cabo Delgado )

O Torneio de Futebol de Salão..., por José Nobre

 

José Nobre
24/11/2020

Moçambique – Moatize – Outubro de 1968
O Torneio de Futebol de Salão.

A vida continuava em Moatize.

Ouviam aqui e ali, que mais tarde ou mais cedo, iriam para Tete, onde ficariam até ao final da comissão. Pouco importava, desde que não fossem chamados para entrar em operações de patrulhamento.
O tempo passava devagar, mas passava e Moatize era uma vila simpática.

Um dia foram convidados, para formar uma equipa de futebol de salão, a qual iria participar num torneio, onde estariam também, várias equipas de civis e uma equipa da malta da força aérea, que estavam numa base situada entre Moatize e Tete.
Os jogos seriam efetuados no ringue de patinagem do Clube Ferroviário de Moatize, mesmo ao lado da piscina.

Iriam defender as cores da 1728 e o bom nome da Cavalaria, disse o Capitão.
E avisou para o bom comportamento que todos deveriam ter no relacionamento com as outras equipas, e sobretudo entre eles próprios.

Tenham muita atenção, eu vou estar em todos os jogos e não quero ouvir, nem caralhadas, nem fodas, nem outras coisas, caso contrário só fazem um jogo e acabou-se.
Tenham sempre em atenção, que não estão no quartel.
Todos aqueles que quiserem poderão assistir aos jogos, desde que tenham um aspeto apresentável.

O primeiro jogo foi num sábado, dia 12 de Outubro de 1968.
Estava lá a malta toda, toda a companhia tinha aderido ao chamamento do Capitão.
Faltavam todos aqueles que estavam de serviço ou de guarda.
Uma noite muito quente.

Na baliza estava o Vítor do terceiro pelotão, bom jogador, todos o conheciam pelo nome de “Vítor Porco”.
Não gostava que o tratassem por porco e respondia logo de seguida, porco é o cabrão do teu pai e a tua família toda.
Entraram em campo, iriam defrontar a equipa das minas de Moatize, a tropa aplaudiu de pé.
O nosso Capitão estava sentado entre as várias individualidades presentes, olhos fixos no ringue, tentando descobrir a mais pequena falha.
Mas não, estavam todos muito bem equipados, limpos e penteados.
Para ele não haviam dúvidas, estava ali a Cavalaria.

Começou o jogo.
A tropa jogava bem, trocavam a bola com facilidade e apareceu o primeiro golo, marcado pelo Zé Carlos, o “manhoso”.
Todos de pé a gritar, 1728 somos os melhores, só mais um gritavam.
Marcaram o segundo golo, desta vez foi o 108 o “Artolas”.
De novo a gritaria e a festa.

Penalti contra a tropa, e foi o dois a um.
Os primeiros assobios surgiram, algumas bocas para o árbitro também, gatuno, vai pró mato malandro.
O jogo endureceu, sucediam-se as faltas, quase sempre contra a tropa, os ânimos aqueciam e o Becas começava a ficar preocupado.
Novo penalti contra a tropa, desta vez sem qualquer dúvida, o “Artolas” fez falta, jogou a bola com a mão, dentro da grande área.
Silêncio, o Vítor “Porco” entre os postes olhava para os pés do mineiro, tentando adivinhar para que lado iria a bola.
Grande defesa do “Porco”.
Nova explosão de alegria.
E aí, ninguém se lembrou mais das advertências do Becas.
Grande Vítor “Porco”.
Ganharam o jogo por cinco a dois e deram uma lição de futebol aos senhores engenheiros da mina de Moatize.

Voltaram orgulhosos para o quartel e nessa noite, a conversa sobre o jogo durou até altas horas da madrugada.

No dia seguinte e já depois do almoço, o Capitão solicitou ao alferes de serviço, para mandar formar toda a companhia, mesmo aqueles que tinham serviços distribuídos.
E assim foi.
Depois do “sentido” e do “descansar”, o Becas falou.
Quero dar-lhes os parabéns pela vitória de ontem, mas sobretudo pela maneira como vocês se comportaram em campo e fora dele.
A nossa vitória não deixa dúvidas, apesar do árbitro vos ter prejudicado durante quase todo o jogo.
O próximo será na sexta-feira e a vitória será nossa.
Ouviam em silêncio, felizes.
Nunca o Becas lhes tinha falado daquela maneira e nem sequer imaginavam que o Capitão gostava de futebol.
O Becas era uma caixinha de surpresas.
Terão uma recompensa, disse.
O almoço de amanhã será bacalhau com grão e se continuarem a ganhar, outras recompensas virão.
Ouviu-se um pequeno burburinho na formatura.
O Guta falou para o “segundo andar”, ou seja para o Carromeu, que era alto como uma torre: - Tu queres ver que ainda me dá férias para ir à metrópole.
A continuar assim, ainda nos deixa trazer as meninas para o quartel.
O Becas continuou: – Só há uma coisa que eu desconhecia, parece que temos um porco na nossa companhia e que eu saiba os porcos não falam e muito menos andam fardados, ou jogam à bola.
Se ele é porco, o pai é porco, a mãe é porca, o que significa que ele não deveria estar entre nós, mas sim nalguma pocilga.
Alguns já riam às gargalhadas, o furriel “chuchas”, continuava hirto, ele e o humor nunca se tinham cruzado.
Silêncio ainda não terminei, para além do porco, suponho que deverão existir outros animais, tais como o Carlos bode, o Zé António chibe e o João boi, e quem sabe o Xico galinha.
Toda a companhia ria às gargalhadas, o Choné, todo curvado, soltava ruidosos guinchos, o Quintela limpava as lágrimas nas mangas do camuflado, o Tramagal dava pulos. O marroquino também ria, mas estava impressionado com duas coisas, o humor do Becas, que desconhecia e a falta do mesmo do “chuchas”.
Nada se mexia naquele rosto, nem o mais pequeno músculo.
Os lábios continuavam colados um ao outro.
Olhava em frente, na direção do telheiro do parque das viaturas militares.
Um olhar vazio, sem expressão, uma estátua parada no tempo.
Pela primeira vez, o algarvio sentiu pena do “parafuso”, ou seja o “chuchas”, o furriel mecânico.

Ficaram em segundo lugar no torneio, quem ganhou foi a malta da força aérea. Continuaram a chamar “porco” ao Vítor.
O Chuchas continuou igual a ele mesmo.

(Apontamentos passados a “limpo” em Portimão – 1982. )
Portimão - 24 de Novembro de 2020 - Um dia cinzento e com o COVID à espreita. Mais uma vez andei â procura de apontamentos ou das minhas "merdas" como vocês lhes chamavam. Encontrei esta e voltei a ter saudades daquele tempo....em que não existia "tempo"....Existiam, as horas. os dias, as semanas, os meses....que custavam a passar, os dias em que não sabíamos se existiriam outros. Tenho saudades de vocês. Saudades daqueles que já partiram. Saudades, do Capitão - Pereira Monteiro, e do meu irmão - José Paiva Carromeu, do 1º cabo mecânico - Carapinha. ( RIP - meus irmãos.)....Sem vocês (todos) aquela guerra teria sido bem diferente( para pior.)
José Nobre - Soldado Condutor - 044483/67 - Moçambique - Agosto de 1967 / Outubro 1969.

domingo, 23 de agosto de 2020

A Guerra da Memória, por José Nobre

José Nobre

2018/11/23
Nunca Atirei Pedras Aos Cães.
Paris – Sábado 9 de Maio de 1970.
A Guerra da Memória.
Não me esqueci de vocês. 
Vou continuando a escrever estas merdas, não na caserna como era habitual, estendido na cama ou sentado num caixote à sombra de um qualquer Imbondeiro.

Como é que se pode ter saudades desses tempos, confesso que as tenho. 

A memória é uma merda. 

Já não conto os cigarros, já não pergunto quem me empresta um selo, quem me paga uma cerveja. 
Ouço as vozes, as gargalhadas, revejo-os de lágrimas nos olhos, naqueles dias em que não recebíamos a carta que tanto esperávamos, ou quando recebíamos uma fotografia, da mãe, da mulher, de um filho ou da namorada. 

A memória e o tempo. 
Não, não me esqueci de vocês. 
Hoje estou sentado numa qualquer esplanada de um café em Paris. 

É sábado. 
Não tenho o camuflado, nem a G3, nem o cinturão das granadas. 
Onde estávamos faz hoje um ano? 
Não me lembro, talvez em Nangade, ou em Moatize? 

Há poucos dias vivi o 1º de Maio, participei pela primeira vez numa marcha de trabalhadores. 
Lembrei-me de vocês. 
Os gajos que marchavam ao meu lado, não eram os mesmos, não cheiravam a suor, não tinham o camuflado colado ao corpo e no olhar o medo. 
Aqui, os companheiros são outros, gajos que fugiram à tropa, à guerra, ao Salazar e à incerteza de voltarem. 
Vieram a “salto” e fazem-me perguntas. 
Como era? 
Como foi? 
Não sei explicar, contar, ou não o quero fazer. 
Prefiro o silêncio, guardar só para mim o que vivemos. 

Isso, passa com o tempo, dizem-me, como se o tempo que passa fosse um tira-nódoas. 
Olha, uma mulher branca. 
Só víamos negras e pagas. 

Aqui, é a liberdade, é proibido proibir, tenho de me adaptar, recomeçar a viver, sem toques de corneta, sem recolher obrigatório, sem ordens gritadas por um sargento qualquer. 

Vamos jogar à sueca, ou preferem à lerpa? 
Está um calor do caraças, as cervejas da cantina estão quentes, amanhã temos mais uma coluna até Palma, começam a faltar os mantimentos, já não temos café e a farinha para fazer o pão está quase no fim. 
Só arrancamos se não chover, com a chuva a picada fica impraticável, preferimos a fome, a uma emboscada. 

Não, não me esqueci de nada, ainda é cedo para esquecimentos, por vezes acordo de noite e estranho não ouvir o vosso ressonar, sobretudo o do Felgueiras, aquilo não era um ressonar, era um comboio de mercadorias a passar pela caserna. 

Lembram-se das revistas eróticas, aquelas que vinham do Brasil, compradas a peso de ouro. 
Fazíamos uma “vaquinha” e mandámos vir uma ou duas revistas, daquelas que nos ensinavam o que já sabíamos, pouco mais ou menos. 
Circulavam pelas casernas e por vezes quando voltavam, faltavam folhas.

Paris, uma tarde de sol, o frio já passou. 
Café Avenue, Route de la Reine, perto de La Porte de Saint Cloud. 
Vou desenferrujando o meu francês, para isso têm contribuído os amigos portugueses, a malta que fugiu à tropa, esses já têm quatro ou mais anos de cá estarem. 
Passamos as tardes de sábado a jogar bilhar. 

Lembro-me de ter saudades tuas, lembro-me de escrever cartas, hoje escrevo-as mas não são as mesmas. 
Vinte e seis meses e quinze dias, não, não contei as horas, ou contei-as. 
Já não sei se me lembro do cheiro a terra molhada, das trovoadas em Muidumbe, da praia de Palma, do som do batuque, das danças, da marrabenta, e do sabor de uma papaia acabada de ser colhida. 
Não acreditava, quando me diziam que nunca mais esqueceríamos

África, não esqueci, tenho-a colada à pele e por vezes volto sem voltar. 
Escrevo para não me esquecer, sobretudo de vocês.
( Parte 1 )

Racista, eu..., por José Nobre

Nunca Atirei Pedras Aos Cães.

Moçambique- Moatize - Distrito de Tete.

Setembro de 1968.

Chamo a vossa atenção para o facto de esta história ou estória, ser uma ficção, nada mais do que uma história inventada. 

Nunca estive em Moatize e muito menos no Clube Ferroviário.

Ou estive?

O ponto de encontro era sempre no Clube Ferroviário de Moatize.

Uma sala enorme que servia de restaurante, cinema, e onde, de vez em quando, também haviam bailes, 

O Ferroviário, como nós o designávamos, era frequentado por brancos, os residentes em Moatize e a tropa. 

Jovens não haviam, estavam todos a estudar nas grandes cidades, Beira, Nampula e Lourenço Marques. 

Restavam os pais, que na sua grande maioria trabalhavam na mina de carvão. 

Era este o cenário, uma vila pacata sem grandes problemas e onde a tropa não necessitava de andar armada.

Racista, eu?

Os negros só entravam no Ferroviário quando havia cinema e tinham três ou quatro filas de cadeiras reservadas para eles, bem lá no fundo da sala.

Os bilhetes eram mais baratos nas últimas filas, as filas dos negros.

No Ferroviário não existiam "fiados", consumias e pagavas.

Se tinhas dinheiro, ias ao cinema e ao baile, ou então comias uns camarões fritos com piri-piri, se não tinhas dinheiro ficavas à porta.

Cinema ás quartas, sextas e sábados, sobretudo filmes de cowboys, nos quais os índios eram sempre os derrotados.

Num final de tarde,rumamos mais uma vez para o Ferroviário, preparados para comer mais um petisco, na esplanada, beber umas cervejas e ver uma sessão de cinema. 

Mais um filme com índios.

Nessa noite decidimos ir para as cadeiras dos negros, sempre poupávamos "algum", para mais uma cerveja.

Éramos sempre os mesmos, o Carromeu, o Augusto, o Nelson, o Banó e o marroquino, os inseparáveis, 

Aproximam-mo-nos da bilheteira e o Carromeu pediu cinco bilhetes dos mais baratos. 

Breve hesitação do senhor Lopes, (nome fictício), um colono com muitos anos de Moçambique, cinquenta e dois, dizia ele, e que nas horas vagas, trabalhava no Ferroviário.

- Então vocês vão para as filas dos pretos?

- Vamos sim, senhor Lopes. Respondeu o Carromeu.

- Mas isso não fica lá muito bem, nem sei como vai reagir o vosso capitão, quando souber que soldados da companhia dele, foram para as filas dos pretos.

- É mais barato, senhor Branco, e não me lixe os cornos.

- Eu não me chamo Branco, o meu nome é Lopes.

O caldo esteve quase a entornar. 

Por fim lá apareceram os cinco pedaços de papel branco, que serviam de bilhetes

- O senhor é mesmo racista, disse-lhe o Augusto.

- Racista, eu? Respondeu.


Apontamentos - Moatize - Junho de 1968 a Março de 1969

Vivências vividas..., por Vasco Alexandre

Vivências vividas

Por Vasco Alexandre

Decorria o ano de 1969, no norte de Moçambique, naquele Niassa profundo, onde as minas eram mato e onde soprava por vezes aquela brisa fresca proveniente da serra Gessi que tanto nos animava.

Como na altura já era técnico de construção civil, fui incumbido pelo comando do meu batalhão de construir algumas pontes em betão armado, que anteriormente eram feitas com troncos de madeira.

Numa dessas pontes salvo erro sobre o rio Bulize, que ficava sensivelmente a meio caminho entre Macaloge e Unango, montei a segurança como quatro postos de sentinela, dois em cada margem do rio passando a picada ao meio. 

O meu grupo era constituído pelo pelotão de reconhecimento reforçado com o pelotão de morteiros, um operador de rádio, um maqueiro e um cozinheiro.

Como tinha pessoal civil a trabalhar, tinha também um "cipaio", que para quem não sabe era o género da "Gnr" local.

Como a zona onde nos situávamos era considerada bastante perigosa, montei quatro postos de vigilância, dois em cada margem do rio passando a picada pelo meio, tudo era feito com a luz do dia, dei liberdade aos meus homens para atirar em sobre tudo o que mexesse depois do pôr do sol.

Tudo decorria com normalidade, até que um dia quando estávamos a acabar de jantar que era carne quase diariamente, pois caça ali não faltava, grita um sentinela do outro lado do rio, meu furriel vem ali um gajo na picada com os braços no ar a perguntar se tropa dá licença! 

Mato o gajo? 
Eu perguntei vem armado? 
Não vem nu! 
Não faças mal ao homem. 
Entretanto mandei dois elementos ao outro lado do rio buscar o homem.

Quando se aproximou de mim o pivete era tal que a primeira coisa que fiz foi arranjar um pedaço de sabão e mandar o gajo tomar banho sempre sob vigilância apertada, como se impunha. 

Fui buscar um dos meus calções e dei-lhe para vestir, perguntei-lhe o nome, disse chamar-se José António, perguntei se tinha fome, "maningue fome meu furrié".

Mandei um dos operários fazer comida e entretanto fui fazendo as perguntas que se impunham e cheguei à conclusão que não se tratava de um elemento perigoso, mas era minha obrigação mantê-lo sob vigilância e assim procedi até passar a primeira coluna com destino a Macaloge.

Entreguei o homem ao comandante da escolta e nunca mais pensei no caso.

Passados uns bons meses fui fazer uma escolta a Vila Cabral e assim que cheguei fui procurar alojamento na flatt dos sargentos onde havia sempre lugar para mais um, depois de um reconfortante duche eu e o meu camarada Carvalho já vestidos com roupa civil fomos jantar ao Planalto onde se comia uns belíssimos camarões grelhados e também uns bons bifes.

Estávamos a meio do jantar quando um dos empregados de mesa todo bem vestido, com calça preta e camisa branca, com um ar muito alegre e sorridente disse: "meu furrié não conhece amim"?

Não não te conheço! 
Sou José António, eu entregar a meu "furrié" lá no picada do Macaloge, meu "furrié maningue iambone" para José António, eu estar muito contente mesmo, amanhã tens que ir no meu casa, já tem meu mulher e meu filha, tanto insistiu que combinamos encontrar no dia seguinte e lá fomos nós a caminho do aeroporto onde ficava a casa dele, pelo caminho contou-me resumidamente como conseguiu recuperar a família e não se esqueceu de dizer que já tinha uma ginga e só falta "gerera".

A minha grande surpresa foi quando a mulher dele com um ar  cerimonial e ao mesmo tempo de gratidão me entregou um pano dobrado e no seu interior estavam impecavelmente limpos e engomados os meus calções, que eu fiz questão em voltar a oferecer-lhe.

Nota:
Neste texto que é absolutamente verídico, utilizei termos locais que só quem comeu daquele pó vermelho sabe entender.

Furrié....= Furriel
Maningue...= Muito
Iambone...=  Bom
Ginga...=.  Bicicleta
Gerera...=.  Frigorífico

domingo, 12 de julho de 2020

A Minha Caderneta Militar..., por José Nobre

01/06/2020

Nunca Atirei Pedras Aos Cães.

Riu-se ao verificar o conteúdo da terrina da SOPA.......

A Minha Caderneta Militar.

Dava um bom filme cómico.......se a realidade não tivesse sido outra.

José Manuel Ferreira Nobre. 

Número de Matricula 044487/67.

Altura - 1m68

Sinais particulares - Nenhum 

Estado - Solteiro.

Resultado da Inspecção Sanitária da Junta de Recrutamento 

Apto para todo o Serviço Militar.

Incorporado em 16 de Janeiro de 1967, como recrutado - Cica 3 - Elvas.

Distribuição de fardamento 

- Alpercatas - 2 

-Barrete nº8 - 1 

-Blusão verde - 1 

- Boina castanha - 1 

- Botas com polaina fixa - 2 

- Calção de Ginástica - 1 

- Calças nº2 - 2 

- Calças nº3 - 2 

- Cuecas de malha - 3 

- Lenços verdes - 4 

- Peúgas - 4 

- Gravata verde - 1 

- Camisola de Ginástica - 1 

- Camisola de lã - 1 

- Camisa nº2 - 2 

- Camisa nº 3 - 2 

- Toalhas - 2 

- Capote - 1 

- Cinto de lona Verde - 1.

Registo Criminal e Disciplinar 

- Cica 3 - Elvas - Crime ou infracção -

Segunda classe de Comportamento (a vermelho) 

- Auto 188 do RDM - 26 de Janeiro de 1967 

- .....Riu-se ao verificar o conteúdo da terrina da sopa.

- Julho de 1967 - Apto para todo o serviço militar 

- Nomeado para servir no ultramar 

- Embarcou em Lisboa no dia 03 de Agosto de 1967, no navio mercante Niassa, com destino à Região militar de Moçambique.

Desembarcou em Lourenço Marques em 25 de Agosto de 1967.



Marchou (coluna militar de Lourenço Marques até Nampula), onde se apresentou em 19 de Outubro de 1967. 

Passa a contar 100% de aumento no tempo de serviço. 

Apresentou-se na sua unidade em 15 de Março de 1968, (Nangade - Cabo Delgado).

Embarcou na Beira em 17 de Setembro de 1969 

- Desembarcou em Lisboa em 12 de Outubro de 1969.

Dias de serviço militar

1967 - 350

1968 - 365

1969 - 315

....................................Total 1030 dias

........................................................................

12 de Outubro de 1969 - Foi nesse dia que nos deixaram no Caís de Alcântara, como mercadoria fora de prazo, entregues a nós próprios,apesar das mazelas,apesar dos traumas, apesar das doenças, apesar da nossa juventude.

Pátria.......mas que Pátria?

Viajámos no “velho Niassa ”..., por Vitor Eira


26/05/2020

Batalhão de Caçadores 1899

A nossa partida para Moçambique foi em 4 de fevereiro de 1967 no cais de Alcântara.

Viajámos no “velho Niassa ”.


Foi uma cerimónia emocionante.
O navio estava todo inclinado a bombordo porque cerca de dois mil militares se aproximavam da amurada do navio para se despedirem das famílias.
Havia choros gritos e desmaios.
A guarda de honra foi feita por militares da polícia do exército que abriram alas ao longo do cais e se perfilaram em continência.

Foi dada ordem de partida e o navio começou a aquecer os motores e a deslizar lentamente.
Os nossos familiares acenavam com lenços brancos e gritavam palavras que já não se percebiam.
Os nossos olhos distraíram-se com algumas lágrimas pensativas.

Embarcaram connosco vários oficiais, de alta patente, que deram os seus discursos muito “patrióticos”.

Para nós aquele que mais nos tocou foi o discurso do nosso 2º Comandante, Fernando Reis Caldeira, quando defendeu a ideia de que os militares não iam para a guerra com as populações de Moçambique, mas sim defender populações indefesas de Moçambique que queriam continuar uma vida calma nas suas machambas com as suas famílias.
Era um discurso diferente daqueles que entendiam que os militares tinham de estar preparados para dar cambalhota em frente e tiros de rajada ao primeiro sinal de presença do inimigo no mato.

De repente, o navio abrandou a marcha e parou mesmo.
Durante mais de 30 minutos estivemos à espera e muito apreensivos.
Havia boatos no ar de que iríamos voltar para trás.
Ficámos espantados quando vimos que os Suas Excelências, os tais dos discursos empolgados, tinham saído todos em Cascais, numa fragata da Marinha de guerra.

E nós lá fomos, mar fora durante vinte e nove dias, que mais pareceram anos.

A viagem foi o maior sacrifício que tivemos de enfrentar.
O navio Niassa, segundo diziam os cozinheiros, era o único navio português em que os tachos não precisavam de ser atados, apesar de não possuir grandes condições para transporte de passageiros chegava a transportar mais de 2000 passageiros, embora a sua lotação fosse de 400 passageiros incluindo a tripulação.

Era um navio de grande estabilidade devido ao seu lastro constituído por passageiros e carga.
Nele viajavam batalhões de militares em condições deploráveis.
Os soldados eram os que mais sofriam durante a viagem, pois que tinham de dormir no porão, com um cheiro nauseabundo, em péssimas condições de higiene e salubridade.
Tudo isto contribuía para que aparecessem as febres, as gastroenterites e as intoxicações alimentares.
Os enjoos eram frequentes e daí a agonias e os vómitos.

Os graduados, com um pouco de melhor sorte, dormiam nos camarotes.
No entanto, apesar das poucas vezes que se deslocavam ao porão não eram indiferentes á situação que se vivia e muitas vezes tinham de recorrer ao “Dr. Charneca” pedir mais umas pastilhas para o enjoo.

O navio Niassa fez escala em Luanda, Lourenço Marques, Nacala, Porto Amélia e Mocímboa.

Chegámos a Mocímboa da praia a 05 de Março de 1967.

Me deram uma amiga, foi uma espécie de casamento temporário..., por José Monteiro

Jose Monteiro para PICADAS DO CABO DELGADO

Linda-a-Velha, Julho de 2020

Já ia a subir o Índico, a bordo do Niassa, quando me deram uma amiga. 
Foi uma espécie de casamento temporário, ou contrato nupcial, como agora se usa.
Ficamos ligados pela meu número mecanográfico e pelo número de série da minha amiga. 
Prometi tratar muito bem dela para que respondesse sempre bem, quando necessitasse.

Em Mueda, quando estava no quartel, sempre esteve por baixo da cama ou à cabeceira, sempre muito perto da sua " ração ".
No mato, e em progressão lenta, muitas vezes a levei ao colo, nos braços, e algumas vezes, quando muito cansado, levei-a de qualquer maneira, que um homem, mesmo muito jovem, não é de ferro. 
Nas noites chuvosas e frias puxava-a para junto de mim, mas continuava fria. Sempre a tratei bem e até tinha um camarada que lhe dava " banho " de óleo todas as semanas, a quem eu pagava uma basuca, coisa barata.
Algumas vezes, já cansado, puxei-a pela bandoleira, mas sempre a considerei uma boa amiga. 
Dei-lhe ordens com o meu polegar direito, a que sempre obedeceu e nas emboscadas, com o meu coração a saltar de medo, bem a senti quentinha e a " falar " rapidamente.

Quando sai de Mueda, viajou comigo no barco para a Beira e desta localidade, de comboio para Moatize, nunca me separando da minha amiga, inclusivé dormiu comigo na carruagem cama, pois nessa época já se constavam ataques à via de caminhos de ferro. 
Chegados a Vila Coutinho, Tete, dei-lhe imenso descanso, muito bem merecido e só peguei nela para longas e belas nomadizações pela área que nos estava destinada, quando fomos destacados para Tsangano, na fronteira com o Malawi e quando nos enviaram em intervenção para a zona operacional do Béne.
Já não me lembro exactamente da localidade onde me " divorciei " dela, não considero traição pois foi um " casamento " forçado.

José Fernando Pascoal Monteiro

Linda-a-Velha, Julho de 2020
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