quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Em frente ao Neutel D'Abreu - "GORONGOZA"..., do Cancioneiro do Niassa, publicado por Abel Lima

 
 
Do cancioneiro do Niassa:
NEUTEL D'ABREU - "GORONGOZA"

Em frente ao Neutel D'Abreu
A quem roubaram a espada
Existe a Gorongoza
Pasto de vacas malhadas

Cheiinha de bois cavalos
E de outros animais
Costumam apelidá-los
De Senhores Oficiais

A messe de oficiais
A messe de oficiais

Numas cadeiras de verga
Expostas no grande hall
Lá estão as vacas malhadas
Com suas coxas ao sol

E os pobres desgraçadinhos
Que trabalham no quartel
Mal percebem coitadinhos
Que são putas a granel

A messe de oficiais

A messe de oficiais

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Hino do Lunho, Cancioneiro do Niassa

No céu cinzento, sob o astro mudo
Batem as hélices na tarde esquentada,
Vêm em bandos, com pés de veludo
Chupar o sangue fresco da manada.

Se alguém se engana com o seu sorrir
E lhes franqueia as portas, à chegada:
Só mandam vir, só mandam vir,
Só mandam vir e não fazem nada.

A toda a parte chegam helicópteros,
Poisam nos tandos, poisam nas picadas...
Trazem no ventre “os cabeças d’ouro”
Que de guerrilhas não percebem nada.

São os reizinhos do Niassa todo.
Senhores por escolha, mandadores sem punho,
Aceitam cunhas e dizem que não,
Passam a ronda sobre os céus do Lunho.
‘Stou farto deles, ‘stou farto deles,
Só mandam vir e não fazem nada.

Quantos “mercedes”, senhor capitão,
Até agora foram fornicadas?!
Eu bem lhe disse que pusesse os homens
Detectando minas, fazendo emboscadas.

Lendo os papéis, lá na sua ZAC,
Gritam p’ra nós, mui enfurecidos:
- Foi de propósito, foi de propósito,
Foi de propósito que ela foi estoirada.

No chão do medo tombam os vencidos,
Ouvem-se os tiros na noite abafada,
Jazem nos fossos vítimas d’um credo
E não se esgota o sangue da manada.
‘Stou farto deles, ‘stou farto deles,
Só mandam vir e não fazem nada.

Comem cabrito, comem cabrito,
Comem cabrito e n´s feijoada.
Fazendo a estrada sobre um chão de greda
Fazem-se aterros, pontes e pontões,

Ouvem-se os tiros lá na emboscada
Aqui no Lunho é que há leões!!!
Ouve-se um estrondo, todo o chão tremendo,
Saltam as chispas com grande estupor,

Soam as tubas: - O que terá sido?
- Mudou o chefe deste sector.
Acaba a guerra, eu cá sou bom
Sou candeeiro e também fogão!

- Só quero feridos à segunda-feira!...
- Não quero mais evacuações!...
- O inimigo deve conhecer-se,
Vamos chamá-lo para as inspecções.

Agora queriam arrasar o LUNHO,
Deixar a estrada e largar a pista!
...Ele é que é bom, já ninguém duvida,
Deixa contente qualquer terrorista.

Encher o peito de metal brilhante,
É essa a sua aspiração.
Por isso deixa os turras sózinhos
Dentro a linha de contenção.

- Deixem crescê-los,organizar-se,
Depois eu vou deitar-lhes a mão!
Tremem as paredes de qualquer quartel,
Falam militares, anda tudo à bulha!...

Ri-se o capitão, ri-se o coronel,
Com esta merda da mini-patrulha!
Estranha maneira de tratar o cancro,
Que se propaga por nossa nação!...

Ele será leigo ou talvez ceifeiro.
Mas nunca médico cirurgião.
‘Stou farto deles, ‘stou farto deles,
Só mandam vir e não fazem nada.

Senhor comandante de batalhão,
Invente mais uma operação
E distribua mais uma ração,
Mais quatro noites a dormir no chão...
‘Stou farto deles, ‘stou farto deles,
Só mandam vir e não fazem nada.

Por uma ponte sem terminação,
O nosso sangue foi sacrificado,
Mas aleluia!, não será lembrada,
Pelos cabeças de ar condicionado.
‘Stou farto deles, ‘stou farto deles,
Só mandam vir e não fazem nada.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

NATAL É TEMPO DE FAMÍLIA, por Martina Lopes


E a família combatente não é excepção.

No tempo de serem filhos, milhares de jovens foram retirados dos seus lares e afastados da família que conheciam, para durante 33 meses prestarem serviço em defesa da Nação.
 
Na sua grande maioria eram provenientes de famílias humildes que lutavam diariamente para sobreviver e matar a fome aos numerosos filhos.
 
Muitos voltaram do Ultramar transformados, mutilados e doentes, não tendo conseguido adaptar-se, nem aos entes queridos, nem tão pouco à sociedade.
 
Outros, que partiram casados e já com filhos ou à espera do seu nascimento, tiveram sérias dificuldades em criar laços de afeto aquando do regresso.
 
Tinham passado anos, os filhos cresceram, os hábitos eram diferentes, a comida não tinha o mesmo sabor, os únicos estrondos eram de festa e não haviam inimigos.
 
Contudo não era fácil baixar a guarda, esquecer a linguagem de violência e reaprender a expressar os sentimentos.
 
Já nada era igual, sobretudo eles próprios.

Muitos houveram ainda, que não mais voltaram a sentir o calor de quem tanto lhes queria.

Durante a guerra, envoltos num espirito forte de entreajuda, colocados frequentemente em situações de vida ou morte, eram entre si os escudos uns dos outros e assim foram criando uma nova família: a dos camaradas.
 
É esta que muitos combatentes mantêm até hoje, em quem conseguem realmente confiar e cuja forte ligação pretendem manter para sempre.

Por fim, há ainda, nas situações em que conseguiram resistir, a família nuclear. Aquela família que todos os dias está ao lado do combatente.
 
São as mulheres, os filhos e os netos que muitas vezes não entendem o seu comportamento e atitudes.

Que tentam descortinar os silêncios prolongados nos cantos dos sofás, a falta de vontade, a passividade dos dias, as respostas impulsivas e sem razão aparente.
 
O Olhar vago e distante.

É esta família que na consoada vai estar sentada à mesa, juntamente com a lembrança de todas as outras famílias aqui relatadas.

O meu voto muito sincero, tal como de toda a equipa do Centro de Apoio Médico, Psicológico e Social da Beira Interior, é de que a noite de Natal que se aproxima seja uma noite de "cessar-fogo", em que todos os combatentes e suas famílias possam encontrar um verdadeiro e merecido momento de paz.

Martina Lopes
Psicóloga Clínica e da Saúde
Coordenadora do Centro de Apoio Médico, Psicológico e Social da Beira Interior
campsbeirainterior@gmail.com

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

O fado do desertor, Concioneiro do Niassa

Estava eu na minha terra
Disseram-me vais para a guerra
Disseram-me vais para a guerra
Toma lá uma espingarda
e um bilhete p’rò navio
e uma medalha num fio
e uma velha, velha farda.

Após dias de caminho
estava já muito magrinho.
estava já muito magrinho.
Esfomeado como um rato
olhei bem, só vi palmeiras,
macacos e bananeiras:
entendi, estava no mato.

O furriel e o sargento
chamavam-me fedorento
chamavam-me fedorento
porque me queria lavar.
E o alferes e o capitão
diziam que era calão
se me viam descansar.

Estava tão farto da guerra
E ao lembrar a minha terra
E ao lembrar a minha terra
fui um dia passear.
Numa palhota sozinha
estava uma preta girinha
que ao ver-me pôs-se a chorar.

E fiquei com tanta pena
dessa mocinha morena
dessa mocinha morena
que fugimos para o mato.
Somos um casal feliz
e já temos um petiz
que por sinal é mulato.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

A Erva lá na Picada, Cancioneiro do Niassa

A erva lá na picada
pisam-na os guerrilheiros
O coração do soldado
pisam-no os coronéis
e ajudam os machambeiros
e ajudam os machambeiros

Que culpa tem o soldado
de ter raiva à sua sorte
se chega um filho da puta
que o mete numa farda
e o manda para a morte
e o manda para a morte

E o Senhor Brigadeiro
Vive muito consolado
Até comprou uma balança
para pesar o dinheiro
que rouba ao pobre soldado
que rouba ao pobre soldado

Quando será Deus do Céu
Que um dia haverá verba
Que um dia haverá verba
Para a malta comer pão
E os chicos erva erva
E os chicos erva erva

E os chicos merda merda
E os chicos merda merda

Merda merda!
Merda merda!
Merda merda!

domingo, 14 de dezembro de 2014

Ventos de guerra, Cancioneiro do Niassa

De quantos sacrifícios senhores que em mim mandam
é feita a vida de um soldado
De quantas noites perdidas no mato
é feita a vida de um guerreiro

São ventos de guerra
Não penses amigo
Que a hora que passa é de perigo
Que a hora que passa é de perigo

De quantos tiros senhores que me ordenam
é feita a vida de um soldado
De quantas minas senhores que em mim mandam
é feita a vida de um guerreiro

Quem limpa senhores as manchas de sangue
que os jovens deixam na picada
Quem limpa senhores lágrimas choradas
por noivas e mães adoradas

São ventos de guerra
Não penses amigo
Que a hora que passa é de perigo
Que a hora que passa é de perigo

De quantas saudades senhores que em mim mandam
é feita a vida de um soldado
E quantas loucuras senhores que me ordenam
contém a vida de um guerreiro

De quantos desgostos senhores que em mim mandam
é feita a vida de um soldado
E quanto vinho senhores que me ordenam
se deve beber p’ra esquecer

São ventos de guerra
Não penses amigo
Que a hora que passa é de perigo
Que a hora que passa é de perigo

E quantas vezes senhores que em mim mandam
se deve expor a vida ao perigo
E quantos gritos se devem soltar
p’ra se acreditar que está vivo

Quantas ideias tombadas na luta
quantas esperanças perdidas
Quanto sangue deve um jovem verter
antes que o chamem de homem

São ventos de guerra
Não penses amigo
Que a hora que passa é de perigo
Que a hora que passa é de perigo

sábado, 13 de dezembro de 2014

Águas de Nangololo em 13/7/1970, por Joaquim Hilario G. Lima

 
 
Sobre o episódio ocorrido nas águas de Nangololo, em 13 de Junho de 1970, é descrito nas páginas 85/87 do livro "Memórias de uma guerra" (todo em verso e documentado com muitas fotos), da autoria do amigo Joaquim Hilario G. Lima, que pertenceu ao BART2901 (CCS, CART2646, 2647 e 2648), aí estacionado desde 28 de Fevereiro de 1970 até 13 de Março de 1971.

(Passo a citar)

O DIA MAIS FATÍDICO
Enquanto em Lisboa festejavam
As marchas dos Santos populares.
Lá longe, nossos olhos choravam
Os mortos e feridos militares.

Treze de Junho sete da manhã,
Não se previa sermos alvejados.
Pequeno almoço de amargo maná,
Fermento que gerou desventurados.

E nessa noite, o "IN" engendrou,
No reabastecimento de água.
A picada de engenhos minou
E nos emboscou à morteirada.

Diariamente os soldados iam,
Água preciosa ao charco buscar.
Picada minada e todos morriam,
Corpos desfeitos voavam no ar.

Como descrever aquela tragédia?
Oito mortos desfeitos nesse dia ...
Feroz inimigo não nos deu trégua,
E aconteceu o que não se previa.

Vê-se na imagem destes soldados,
Toda a tristeza da dor que sentiam.
Apanharam amigos aos bocados,
E empilhados a seus pés os viam.

Restos mortais assim transportados,
Momentos antes ainda eram vidas.
Agora à nossa frente retalhados,
Foram horas de dor muito sentidas.

Todos os corpos identificados,
Em lençóis brancos, sinal de pureza.
Neles embrulhados e sepultados,
Entregues à terra mãe natureza.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Chegou outra vez Maio, por Luis Oeiras Fernandes

Luis Pinto Coelho
Chegou outra vez
Maio, o mês !
No princípio
era Maio,...
as giestas,
o fogo da primavera,
as vidas modestas.

Depois
fizeram despedidas,
longos adeus,
braços abertos,
rumando dos seus.
E passou.
Passou gente,
passou espaço,
passou tempo
e veio cansaço.
A guerra,
o sol,
a chuva,
a terra,
o vento
se aproximou
em passo lento
e tudo passou.
Chegou outra vez
Maio, o mês !
Nesse então
era Maio,
o capim,
o sol do mato,
a seiva carmim.
Depois
fizeram desejos,
rolos de fumo,
braços pendentes
rumando sem rumo.
E chegou.
Chegou o dia,
chegou a sorte,
chegou o tempo
e veio a morte.
A vida,
a carne,
a luta,
o sangue
de nós
se afastou
em passo veloz
e tudo acabou.
Passou outra vez
Maio, o mês !

Poema de Luis Oeiras Fernandes

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

ECAV 1, por Manuel Sousa


Luís Coimbra
Luís Coimbra,
ex- Alferes Mil.º de Cavalaria
actualmente Tenente-Coronel (Ref.)
 
Esquadrão de Cavalaria 1
Vila Cabral
 
Passou a comandar o ECav1 após a morte do Cap. Faria Affonso, em 17Jul1970, durante a operação "Nó Górdio"
Imagem cedida por Carlos Coutinho
 
Porto Amélia
 
Quartel que o Esqº construiu em Porto Amélia
 
Um grupo do Esqº
 
A primeira formatura do Esqº em Porto Amélia
 
Clique na imagem para ampliação
Um grupo do Esqº na minha despedida
 
Um momento de lazer no refeitório do quartel em P. Amélia; o militar em pé à esqª é o Augusto Silva; era o único militar do Esqº que não tinha pelotão; saía com todos eles, todos os dias, acompanhando os condutores do rebenta-minas; por isso mesmo atribui-lhe um estatuto especial, aceite por todos, que era o seguinte: ele tinha uma mulher que arranjou no aldeamento, então, dormia com ela todos os dias, e nem vinha ao quartel; para isso os condutores do rebenta-minas levavam-lhe arma, e coluna para perto da cubata onde viva e recolhiam o Augusto Silva no inicio das escoltas e deixavam-no no mesmo sítio no regresso; e porquê? porque a este militar muitos de nós deviam a sua vida, pois ele era um verdadeiro caça-minas, com um olho de lince incrível; detectou minas sem fim; seguia sempre em pé com uma concentração absoluta na estrada e, porque por lá passava todos os dias sabia distinguir qualquer alteração que se verificasse na mesma; recebeu o prémio Governador Geral e foi louvado por mim e pelo Comandante--Chefe. Ah, e foi colocado no Esqº por castigo, pepois de cumprir um pena na Chefina (penso que era assim quese designava uma determinada prisão)
 
Clique na imagem para ampliação

Sala de refeições construída pelo Esq. 1 em Porto Amélia
 
 
Informação de Manuel Sousa, ex- Furriel Mil.º de Reconhecimento de Cavalaria, do Esquadrão de Cavalaria 1:
 
A esta última foto, posterior à minha passagem pelo Esquadrão, eu Sousa, não posso deixar de fazer o seguinte comentário:
 
Como era tradição no Esq. 1 as refeições eram de muito boa qualidade e igual para todos: oficiais, sargentos e praças que partilhavam o mesmo espaço. Como também se pode ver nas fotos a presença de crianças era possível pois a linguagem era cuidada, sobretudo na presença de oficiais. Também se pode reparar em todas as fotos que, apesar de serem militares operacionais, todos se apresentavam sempre cuidadosamente fardados ou vestidos à civil. A Disciplina era uma exigência constante mas a camaradagem e partilha também o era.
 

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O Dia em que Comandei a Companhia, por Manuel Correia de Bastos


O primeiro objetivo de um soldado é permanecer vivo, e não há soldado que não faça tudo para sobreviver; mas a um enfermeiro na guerra é exigido mais do que isso.
 
É necessário que se esqueça de si no momento mais perigoso e vá em socorro dos que tombaram, trocando a arma pelos produtos de enfermagem, que terá que manejar com os cuidados e assepsia possíveis no meio do pó, da terra, da confusão e do perigo de morte.

É a ele que cabe dizer-nos que tenhamos coragem, que não vamos morrer, quando ficamos feridos, e é a ele que cabe procurar o que resta de nós na picada ou no meio do capim quando somos feitos em pedaços por uma mina, e depois arrumar o que se pôde encontrar para que as nossas famílias, lá longe, venham a ter algo de nós para velar.

Quando se ouve o sinistro estampido de uma mina todos os soldados se atiram ao chão, rastejam e se protegem debaixo das viaturas.
Todos não. O cabo Costa levantou-se quando os outros se baixaram, e foi em busca dos feridos. Dirigiu-se ao Raimundo e preparou-se para o socorrer.
A cara dele numa pasta de sangue quase sem ver nada.
– Vai procurar o Lemos, Costa.
Vai socorrer o Lemos.

Não tinham passado mais de vinte segundos desde a explosão.
Vinte segundos em que se pode aprender o que não se aprendeu em vinte anos.
Vinte segundos que me fizeram dar um salto psicológico.
 
É frequente justificarem-se os atos insanos praticados na guerra, com a tensão vivida nos momentos de perigo.
Homens pacíficos; camponeses, operários, estudantes, empregados de escritório; transformados durante anos em predadores, sofrem um desgaste moral impensável em momentos de paz…
A síndrome da degradação moral.
A génese do distúrbio pós-traumático.
Mas… em casos por ventura raros; estou seguro, obtêm uma sublimação moral, um salto psicológico.
Se tem algum fundamento a resistência psicológica de que me gabo constantemente, devo-a a esses vinte segundos.
Tenho a certeza que se a guerra me tivesse dado oportunidade, teria saído de lá muito melhor do que entrei.
Um homem com a missão de salvar os seus pares no pior momento do perigo.
Um homem em risco de ficar cego por uma mina traiçoeira a pensar no seu camarada tombado na picada.
Vinte segundos da minha vida que guardo religiosamente como um legado de valor incalculável.
Há muito que a guerra acabou, e durante estes anos todos, alguns de nós guardam em silêncio imagens como estas.
É que, entretanto, outras guerras tiveram lugar, onde outros soldados com mais de vinte anos de vida, mas sem terem ainda os vinte segundos que lhes permitissem dar o salto psicológico que os fizessem crescer, julgam que é o gatilho das armas que empunham, que fazem deles heróis, ou homens dignos de admiração pelos outros representantes da sua espécie.
Alguns de nós, guardam em silêncio muitos vinte segundos como estes e olham para o lado incomodados, quando a televisão mostra em direto as guerras que não param de se suceder, transmitidas como espetáculos de circo.

Durante anos e anos, tenho revivido a imagem do enfermeiro Costa a tentar socorrer o Raimundo e depois a ir em busca do Lemos partido em dois no meio da picada, e por vezes tento imaginar o que seria ver essa imagem na televisão à hora do jantar, ou no café, no meio das risadas dos amigos, e acabei por perceber porque tantos de nós optam pelo silêncio.
É por pudor que o fazem.
Por não serem capazes de expor em público uma memória do foro íntimo.
Seria como subir a um coreto para chorar um desgosto profundo.
É algo demasiado valioso para ser tratado como um entretenimento passageiro, como um fruto que se sorve rapidamente cuspindo o caroço para o chão.
Os consumidores de emoções rápidas aprendem a não penetrar na essência das coisas; entendem das coisas apenas o que o olhar apreende; fazem com toda a informação o que fazem com a comida, mastigada à pressa entre duas tarefas urgentes e inadiáveis, dado que toda a fast-food é apenas para defecar.
 
Não poderão entender as emoções envolvidas numa frase assim, aparentemente banal, "Vai socorrer o Lemos", dita entre a vida e a morte, entre a coragem e o medo, entre o instinto primário de sobrevivência e o altruísmo, entre o cumprimento do dever e o sentido crítico.
Não poderão entender que um ato que envolva risco para quem o pratica só merece ser considerado corajoso se não for gratuito ou exibicionista, e se for consciente; isto é, é preciso sentir medo para se ser corajoso.

O Raimundo ia a comandar a companhia, foi ferido, recebeu o socorro corajoso do enfermeiro Costa, e fez ele próprio a triagem da emergência médica, secundarizando-se, ficando na berma da picada, escorrendo sangue do rosto, ainda sem saber se não ficaria cego.
– Vai procurar o Lemos, Costa.
Vai socorrer o Lemos.
Eu era agora o mais graduado da companhia.
E era preciso continuar, era preciso estar à altura do cargo que recebi do Raimundo, era preciso encobrir o medo, cabia-me a mim agora fingir coragem.
Mas fingir coragem, é na guerra, a única coragem possível.
Os helis vieram e levaram os feridos, a coluna organizou-se e continuou a sua missão.
A tensão, o medo e um ódio indefinido tomou conta de todos como era costume.

E longe dali, os que verdadeiramente mereciam ser objeto do nosso ódio, aqueles que não tinham coragem de tomar decisões com medo de mudar o rumo da história, por não estarem à altura dos cargos que ocupavam, continuaram ainda por muito tempo a manter tudo na mesma, até que um dia o nosso ódio não coube mais em nós, e apeámo-los do poleiro.
 
As mesmas mãos e as mesmas armas, e a mesma generosidade.
Quando um povo é capaz de lutar e descobre que não são justas as causas que lhe deram, inventa uma.
Depois seguiu-se um longo período de silêncio sobre a Guerra Colonial em que a nação inteira pareceu viver um coletivo distúrbio pós-traumático do stress de guerra.
Silêncio só entrecortado por uma falsa autocrítica de características tipicamente portuguesas, que se apressou a fazer alarde de todos os erros e crimes dos soldados portugueses, desculpando ou ignorando os dos seus opositores na mesma guerra; o que ainda assim teria algo de positivo se fosse genuína e contribuísse para uma reeducação coletiva, porque todos os crimes merecem denúncia e punição.
 
Mas infelizmente essa autoflagelação, essa ancestral e muito portuguesa lamúria auto punitiva, não passa de uma cobarde generalização dos erros dos nossos pares com o intuito de parecermos individualmente a excepção à regra.
A mesma pseudo-autocrítica que ao longo dos anos só tem contribuído para perpetuar o enaltecimento reverencial dos feitos alheios e cultivar a baixa auto estima nacional.
Mas se a má consciência pátria esquece os seus soldados assim que não precisa deles, ou se acha que é fingindo que nada aconteceu que paga a sua dívida para com a História, é porque não aprendeu nada.
Tão indignos são os governantes que não estão à altura da história por tentarem manter uma guerra injusta, como aqueles que se esquecem das suas vítimas.
E nós?
Será que nós não temos a obrigação de pôr o pudor de lado e contribuir com a nossa experiência para que os nossos filhos não permitam que cheguem ao poder aqueles que hão-de enviar os nossos netos para a guerra?

Há muitos anos, nesse dia em que eu tive que comandar a minha companhia, numa picada perdida no meio do mato, no norte de Moçambique, o enfermeiro Costa ainda teve que se erguer mais uma vez, quando soou de novo o sinistro baque de mais uma mina; e enquanto os outros se atiravam ao chão.
Durante alguns minutos, nos minutos mais perigosos que se podem viver numa guerra, teve que se esquecer novamente de si, porque a guerra lhe entregou a minha vida para salvar.
E o comando da companhia, como um testemunho, que eu recebera do Raimundo.
Nesses curtos minutos em que a vertigem da morte eminente nos leva todos os sentimentos e ficamos completamente despidos por dentro, só um olhar humano nos restitui a vida.
O olhar a fingir coragem, a única coragem genuína.

E até ao resto dos meus dias, aqueles momentos da mais genuína coragem que um homem pode testemunhar, criaram-me uma enorme responsabilidade; a de tudo fazer para que esta vida que o enfermeiro Costa salvou mereça a pena ser vivida; quanto mais não seja para que o seu ato heroico não se viesse a tornar num inglório, gratuito e inútil sacrifício.