Recordações em tempos de Covid.
Nunca Atirei Pedras Aos Cães.
Moçambique – Agosto de 1967 – Outubro de 1969.
As Buganvílias de Cabo Delgado.
Cheguei a Muidumbe em finais de Outubro de 1967, depois de ter estado em Lourenço Marques, durante dois meses.
Passei do oitenta para o oito.
Agora sim, estava na zona de guerra, em pleno Cabo Delgado, na fatídica zona de Mueda.
Voltei, voltamos, muitas vezes a Mueda, era lá que nos íamos reabastecer e foi nessa picada, entre Muidumbe e Mueda, passando por Miteda e Nangololo, que sofremos as primeiras emboscadas, que levantamos as primeiras minas e onde sentimos o medo, para o qual não estávamos preparados.
Por estranho que pareça, não anotei a data da primeira emboscada.
Sei que foi em Novembro.
Passamos Nangololo, lá onde a tropa dormia dentro de uma igreja, um altar limpo e florido, o único local que estava limpo dentro daquela igreja, o resto eram camas, malas, caixas de ração de combate, armas, granadas......e o Senhor crucificado, numa cruz de pau-preto, olhando para todos aqueles que deambulavam de um lado para o outro, que escreviam cartas e aerogramas, sentados nos degraus do altar e que dormiam, por vezes, dentro do confessionário.
De religiosos, nem sinal, zarparam todos para Mueda, ao primeiro sinal de perigo, deixando a igreja entregue aos militares.
Pela primeira vez vi uma igreja em autogestão, cada um rezava quando queria e como sabia.
Era estranho, mas quando chegávamos a Nangololo, muitos de nós, pelo sim e pelo não, lá íamos rezar, uma oração ou outra, aos pés do Cristo, pregado numa cruz de pau preto.
Depois arrancávamos em direção a Miteda.
Motores em marcha, e os nossos camaradas, sentados nos bancos dos unimogues, ou em cima da carga das berliets, armas em riste e o olhar no capim que circundava a picada.
Lama e mais lama, horas e horas para percorrer, trinta quilómetros até Miteda.
Chovia nessa manhã.
O Pedro maconde, o pisteiro, ia a meu lado, sentado no unimogue, olhando para a picada, para as árvores, tentando descobrir o mais pequeno sinal de perigo.
Ele, já tinha feito aquele percurso, dezenas de vezes, com outras companhias militares que nos antecederam em Muidumbe, conhecia aquela picada, como a palma das suas mãos.
Ouviu-se o primeiro tiro, as viaturas pararam, saltamos para a picada e o arraial começou.
Não levei a minha G3, quando saltei da viatura, abriguei-me por detrás do rodado da viatura e assim fiquei, quase paralisado, era o meu baptismo de fogo, a primeira vez que ouvia o som das armas do inimigo.
O Pedro maconde, aproximou-se, rastejando, e perguntou-me.
Onde está a arma do tropa?
Disse-lhe que a tinha deixado na viatura.
Foi busca-la e entregou-ma.
Não disparei uma única bala.
Ouvi-as a bater na carroçaria das viaturas, a assobiarem, ouvi o som das nossas granadas e da metralhadora que estava montada na Berliet, rebenta-minas.
O radio-telegrafista, tentava entrar em contacto com Mueda, tentava dar as coordenadas do local da emboscada.
Durou minutos que pareceram horas.
No final tivemos quatro feridos, um deles com muita gravidade, uma rajada de metralhadora nas pernas e o meu camarada Quintela, ele que sempre me acompanhou, desde a recruta , com um tiro numa nádega e os outros dois, com pequenas escoriações, provocadas pelo salto que deram para a picada, quando a emboscada começou.
Voltou o silêncio.
Pesado.
O enfermeiro tratava do ferido mais grave, o telegrafista pedia a Mueda, o envio urgente de um Heli, para a evacuação dos feridos.
Nós, depois de muitos minutos, em que não se ouviu um tiro, começamos a fazer o reconhecimento do local.
Começamos a limpar uma zona para o Heli pousar.
Vinte minutos depois, ouvimos o som do motor do Heli e os nossos camaradas foram evacuados.
Um deles nunca mais o voltamos a ver, faleceu no hospital de Mueda.
O Quintela foi transferido para o hospital de Nampula e só voltou à nossa companhia militar, quando já estávamos em Moatize, quase um ano depois.
Não é fácil ver um camarada estendido na picada, enquanto o enfermeiro tenta estancar o sangue e lhe dá uma dose de morfina, para não sentir as dores.
Depois da emboscada, dormimos em Miteda.
No dia seguinte arrancamos para Muidumbe, lá onde as buganvilias, nasciam, cresciam por todo o lado.
As vermelhas eram as mais bonitas, encostadas à nossa caserna, regadas e mimadas por todos.
O vermelho, no verdejante vale de Muidumbe, lá onde envelhecíamos, pouco a pouco.
Muitos anos mais tarde, tive bouganvilias no quintal da minha casa, vermelhas, como as de Muidumbe.
( Apontamentos – Muidumbe e outros locais – Moçambique – Cabo Delgado )