Mostrar mensagens com a etiqueta metralhadora. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta metralhadora. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

As Buganvílias de Cabo Delgado..., por José Nobre

 

José Nobre

23/11/2020
Recordações em tempos de Covid.

Nunca Atirei Pedras Aos Cães.
Moçambique – Agosto de 1967 – Outubro de 1969.
As Buganvílias de Cabo Delgado.

Cheguei a Muidumbe em finais de Outubro de 1967, depois de ter estado em Lourenço Marques, durante dois meses. 

Passei do oitenta para o oito. 
Agora sim, estava na zona de guerra, em pleno Cabo Delgado, na fatídica zona de Mueda. 
Voltei, voltamos, muitas vezes a Mueda, era lá que nos íamos reabastecer e foi nessa picada, entre Muidumbe e Mueda, passando por Miteda e Nangololo, que sofremos as primeiras emboscadas, que levantamos as primeiras minas e onde sentimos o medo, para o qual não estávamos preparados. 

Por estranho que pareça, não anotei a data da primeira emboscada. 
Sei que foi em Novembro. 
Passamos Nangololo, lá onde a tropa dormia dentro de uma igreja, um altar limpo e florido, o único local que estava limpo dentro daquela igreja, o resto eram camas, malas, caixas de ração de combate, armas, granadas......e o Senhor crucificado, numa cruz de pau-preto, olhando para todos aqueles que deambulavam de um lado para o outro, que escreviam cartas e aerogramas, sentados nos degraus do altar e que dormiam, por vezes, dentro do confessionário. 
De religiosos, nem sinal, zarparam todos para Mueda, ao primeiro sinal de perigo, deixando a igreja entregue aos militares. 

Pela primeira vez vi uma igreja em autogestão, cada um rezava quando queria e como sabia. 
Era estranho, mas quando chegávamos a Nangololo, muitos de nós, pelo sim e pelo não, lá íamos rezar, uma oração ou outra, aos pés do Cristo, pregado numa cruz de pau preto.

Depois arrancávamos em direção a Miteda.
Motores em marcha, e os nossos camaradas, sentados nos bancos dos unimogues, ou em cima da carga das berliets, armas em riste e o olhar no capim que circundava a picada. 
Lama e mais lama, horas e horas para percorrer, trinta quilómetros até Miteda.
Chovia nessa manhã. 
O Pedro maconde, o pisteiro, ia a meu lado, sentado no unimogue, olhando para a picada, para as árvores, tentando descobrir o mais pequeno sinal de perigo. 
Ele, já tinha feito aquele percurso, dezenas de vezes, com outras companhias militares que nos antecederam em Muidumbe, conhecia aquela picada, como a palma das suas mãos.

Ouviu-se o primeiro tiro, as viaturas pararam, saltamos para a picada e o arraial começou. 
Não levei a minha G3, quando saltei da viatura, abriguei-me por detrás do rodado da viatura e assim fiquei, quase paralisado, era o meu baptismo de fogo, a primeira vez que ouvia o som das armas do inimigo. 

O Pedro maconde, aproximou-se, rastejando, e perguntou-me. 
Onde está a arma do tropa? 
Disse-lhe que a tinha deixado na viatura. 
Foi busca-la e entregou-ma. 
Não disparei uma única bala. 
Ouvi-as a bater na carroçaria das viaturas, a assobiarem, ouvi o som das nossas granadas e da metralhadora que estava montada na Berliet, rebenta-minas. 

O radio-telegrafista, tentava entrar em contacto com Mueda, tentava dar as coordenadas do local da emboscada. 
Durou minutos que pareceram horas. 
No final tivemos quatro feridos, um deles com muita gravidade, uma rajada de metralhadora nas pernas e o meu camarada Quintela, ele que sempre me acompanhou, desde a recruta , com um tiro numa nádega e os outros dois, com pequenas escoriações, provocadas pelo salto que deram para a picada, quando a emboscada começou.
Voltou o silêncio. 
Pesado. 
O enfermeiro tratava do ferido mais grave, o telegrafista pedia a Mueda, o envio urgente de um Heli, para a evacuação dos feridos. 

Nós, depois de muitos minutos, em que não se ouviu um tiro, começamos a fazer o reconhecimento do local. 
Começamos a limpar uma zona para o Heli pousar. 
Vinte minutos depois, ouvimos o som do motor do Heli e os nossos camaradas foram evacuados. 
Um deles nunca mais o voltamos a ver, faleceu no hospital de Mueda. 

O Quintela foi transferido para o hospital de Nampula e só voltou à nossa companhia militar, quando já estávamos em Moatize, quase um ano depois. 
Não é fácil ver um camarada estendido na picada, enquanto o enfermeiro tenta estancar o sangue e lhe dá uma dose de morfina, para não sentir as dores.

Depois da emboscada, dormimos em Miteda.
No dia seguinte arrancamos para Muidumbe, lá onde as buganvilias, nasciam, cresciam por todo o lado. 

As vermelhas eram as mais bonitas, encostadas à nossa caserna, regadas e mimadas por todos. 
O vermelho, no verdejante vale de Muidumbe, lá onde envelhecíamos, pouco a pouco. 

Muitos anos mais tarde, tive bouganvilias no quintal da minha casa, vermelhas, como as de Muidumbe.

( Apontamentos – Muidumbe e outros locais – Moçambique – Cabo Delgado )

domingo, 29 de setembro de 2013

A Primeira Mina..., por António Silvestre


Eram 9 horas da manhã de princípios de Março de 1972, o Sol já ia alto e alguns de nós já tínhamos tirado o camuflado e era em tronco nu que caminhávamos picada fora, rumo ao Sagal.
Era a primeira coluna a valer para a maioria de nós, pelo que todos íamos bastante tensos e apreensivos à espera da mina escondida ou da emboscada traiçoeira.
Com a temperatura a subir e a sede a aumentar socorri-me de uma cerveja 2M enquanto observava a picada até onde a vista alcançava, tentando adivinhar se já estaríamos perto do Chindorillo. Mas não tive sorte e voltei aos meus pensamentos, afinal o que estava ali a fazer a cerca de 13000 Km de casa, a defender não sabia o quê, colocando a minha vida em risco a cada momento e como se isso não bastasse sendo o responsável pela vida de cerca de uma centena de homens que me acompanhavam.
Bebi mais um golo de cerveja, agora, já morna, e tentei ser otimista, com um pouco de sorte daqui por umas horas estaríamos de regresso a Mueda, tomaríamos um belo banho, beberíamos umas cervejas bem frescas e sentar-nos-íamos a ler o correio que nos trazia as notícias daqueles que lá longe, no Puto, se preocupavam connosco.
Voltei novamente à guerra, onde cerca de uma dúzia de viaturas seguia lentamente pela picada, na primeira, um rebenta-minas, o condutor tentava desesperadamente pisar as pegadas que os picadores em bicha de pirilau iam deixando pelo caminho.
O andamento era lento, demasiado lento para os nossos nervos, mas todos sentíamos que dependíamos da perícia daqueles homens, tanto os que procuravam as minas como os que tentavam conduzir aquelas viaturas, algumas das quais já deveriam estar na sucata.
Pé ante pé, rodado sobre rodado, era uma autêntica lotaria, só que ali não se tentava ganhar dinheiro, mas apenas não perder a vida.

De repente um grito "mina".
Dirigi-me para o local onde tinha sido detetada a mina, mas nesse momento o furriel da fox gritou que nos deitássemos todos ao chão, pois ele ia bater a zona.
Ouvi então pela primeira vez o matraquear fortíssimo da metralhadora fox, cortando os ramos das árvores dum lado e do outro da picada numa extensão de várias centenas de metros, tentando dessa forma detetar alguma emboscada que por acaso estivesse preparada.

Quando terminou perguntei quem ia rebentar a mina e perante a falta de resposta conclui que como checa que era tinha cometido um erro, na coluna não seguia nenhum sapador.
Como comandante da coluna não tinha alternativa, teria que ser eu, até porque já o tinha feito uma vez em Lamego, na especialidade, embora aí com uma mina a fingir. Assim, peguei na bolsa de sapadores, essa pelo menos não tinha ficado esquecida, e depois de mandar afastar toda a gente instalei-me junto da mina para iniciar o meu trabalho.
Nessa altura chega junto de mim o Barreiros que diz que me vai dar proteção e ao mesmo tempo aprender como se faz para na próxima vez já estar preparado. Enquanto o Barreiros com a catana cortou o terreno à volta para verificar se não havia algum fio enterrado eu preparei-me para iniciar o meu trabalho.
Fiz tal e qual como aprendera na instrução, cortei um bocado de cordão lento, cerca de 15 cm, o que dava para 15 segundos, peguei no alicate e no detonador, liguei o cordão lento ao detonador, até aqui tudo bem, coloquei o detonador no petardo e, agora já a suar por todos os lados e com as mãos a tremer entalei o petardo cuidadosamente junto à mina. Estava tudo preparado, já só faltava acender o rastilho, pedi os fósforos ao meu ajudante que até aqui se mantivera em silêncio e depois de acender um fósforo encostei-o ao rastilho que imediatamente brilhou e começou a arder.
De imediato eu e o Barreiros começámos a correr e atirámo-nos para debaixo do rebenta minas esperando pela grande explosão.
Passaram os 15 segundos, depois outros 15 e ainda mais 1 minuto, dois minutos e nada, algo tinha corrido mal e só havia uma coisa a fazer, ir novamente até à mina e tentar perceber o que se tinha passado.
E lá fomos novamente eu e o meu ajudante, agora com alguns curiosos atrás que queriam ver com os seus próprios olhos o que teria acontecido. Com o máximo cuidado aproximámo-nos lentamente e verificámos que não havia nenhum mistério, simplesmente o cordão lento que já era velho ardera apenas um bocado e apagara-se, por sorte não era cordão detonante, pois os checas tinham pegado no primeiro cordão que encontraram e foi esse que utilizaram.
Resolvemos começar tudo de novo e enquanto eu preparava o detonador e o petardo, o meu ajudante, já mestre, cortava um bocado de cordão lento agora bastante maior, cerca de 25cm e desfiava os lados do mesmo para que este pudesse arder nas melhores condições.
Depois de tudo novamente preparado, acendemos o rastilho, esperámos um pouco para ver se ele não se apagava e como verificámos que estava a arder normalmente iniciámos nova corrida e abrigámo-nos debaixo do rebenta minas. De repente um estrondo enorme, pedras e areias a cair por todos os lados.
Olhei para a picada e um cogumelo elevava-se no ar e um cheiro diferente entrava-me pelas narinas, cheiro esse que me iria acompanhar muitas vezes e que fiquei depois a saber que era o que os velhinhos chamavam "cheiro a trotil".

 Tinha sido a minha primeira mina, mal sabia eu que no futuro não só eu, mas muitos dos elementos da companhia iriam rebentar dezenas, talvez centenas de minas, sem coletes de proteção, sem máscaras, sem televisões a filmar e principalmente incógnitos e sem o reconhecimento do país que para lá os mandou.

ex-Alf. Mil. Op. Esp. António Silvestre,
Cabo Delgado - Mozambique