quinta-feira, 17 de março de 2016

A EMBOSCADA, por Joaquim Santos

Joaquim Santos
DIA 23 DE FEVEREIRO DE 1969 (há 47 anos)
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Passaram muitos anos, mas a recordação daquele dia 23 de Fevereiro de 1969, esteve sempre presente, embora algo difusa em alguns pormenores, que o tempo levou consigo como recordação.
 
Este foi um tempo estacionário, sem horizontes, vivido dia após dia, pela incerteza e a ansiedade resultante da imprevisibilidade das diversas situações em ações de guerrilha no interior da África.
 
Num aquartelamento improvisado, onde tudo era rudimentar, onde quase tudo faltava e onde tudo teria de ser feito, melhorando sucessivamente as instalações, tendo em vista a segurança daquele reduto, para uma estadia que poderia ser prolongada e onde para além de tudo, teria de se manter uma atividade operacional regular.
 
Recordo-me da primeira vez que vi aquele local.
Olhei as viaturas carregadas de militares, “novinhos em folha” acabados de chegar da Metrópole, deslumbrados por se sentirem envolvidos pela natureza africana.
Os nossos rostos deixavam transparecer um misto de medo e receio do desconhecido.
Concentrados na observação do meio envolvente, alimentando o nosso imaginário, onde tudo seria possível, desde os ataques do inimigo até às investidas das feras camufladas no meio da vegetação, ao longo da picada que nos conduziria aquele local, o Vuende.
A coluna militar aproximava-se lentamente e foi então que vislumbrei, no meio da confusão das viaturas e do pó que nos envolvia, aquela clareira rodeada de vegetação com três construções rudimentares em tijolo de cimento, chapas de zinco e duas outras de construção artesanal, dentro de um perímetro demarcado por uma vedação, com três arames farpados de fácil acesso a qualquer intruso…
Naquele momento tive uma sensação de apatia total, apeteceu-me retroceder, mas nesse desalento, algo renasceu em mim que me impeliu a enfrentar e ultrapassar esta “prova de fogo” como um desafio às minhas capacidades físicas e intelectuais.
 
Desde o momento da mobilização, sempre julguei estar preparado psicológica e operacionalmente para as mais diversas situações, não só pela formação e preparação recebida, como também pelo empenhamento que assumi ser fundamental para enfrentar as dificuldades num meio hostil e desconhecido.
Muito antes de ser chamado a cumprir o serviço militar, tive consciência que iria viver esta guerra por dentro e não através dos jornais e das diversas publicações dos correspondentes das Agências Internacionais nos diversos teatros de guerra, na época - Vietnam (Dien Bien Phu) com os Franceses primeiro e depois com os U.S.A., a Argélia e no ex-Congo Belga.
 
Foi assim, com esta “bagagem” que entrei na recruta na E.P. de Cavalaria em Santarém, tendo escolhido a especialidade de atirador e no C.I.S.M. em Tavira, a opção da mobilização para Moçambique.
 
Com o decorrer do tempo, aquele local - Vuende - passou a ser o centro do mundo, o lugar e a casa de todos aqueles que durante 21 meses, aguentaram a incerteza do dia seguinte, a impossibilidade de pensar o futuro...
Transformaram as tristezas em alegrias no meio da amizade e camaradagem.
Ali se festejavam Aniversários e Natais de todas as Famílias.
 
Quando se saía durante alguns dias, para as mais diversas atividades operacionais, era sempre bom regressar aquele local.
 
Nesse domingo de Fevereiro, também acabamos por regressar de acordo com o previsto.
Depois de três dias de patrulhamento no “mato”, na zona do Cauére, onde a atividade inimiga se fazia sentir em algumas ações ofensivas naquela região, através de flagelações, emboscadas e com alguma frequência na colocação de minas anti-carro, cujo efeito desmoralizador e devastador provocava feridos e mortos nas nossos fileiras.
 
Nos dois dias anteriores, a progressão pelo mato ao longo dos trilhos, decorreu normalmente, apesar do cansaço que se fazia sentir, não só pelas distâncias já percorridas através de serras e vales, com armas e equipamento, como também pelo clima quente e muito húmido, com um aroma acre e doce que exalava da vegetação.
 
Vigilantes, caminhavam carregando cada um dentro si, alimentando o seu pensamento, com ausências, sempre presentes, de pais e irmãos, mulheres e filhos, amigos e namoradas.
Outros trocavam as suas histórias, outros haviam que falavam de futebol e também do tempo que teimava em não passar.
 
Detivemos duas mulheres e uma criança, no segundo dia, que se deslocavam em sentido oposto e conforme se veio a verificar, tinham ido levar alimentação ao inimigo, estacionado algures numa base itinerante.
 
Após uma ligeira revista superficial pelos seus haveres, encontramos duas pequenas folhas escritas.
Eram portadoras de uma mensagem dirigida a outros elementos do inimigo que operavam na mesma zona de intervenção.
Nesse mesmo dia, tivemos um encontro fugaz com dois indivíduos, que ao avistarem-nos se puseram em fuga, no meio duma extensão de capim muito alto, o que indiciava pertencerem ao inimigo.
De imediato, se fez uma perseguição na tentativa de capturá-los, mas o terreno e a vegetação dificultaram a nossa ação, tendo sido feitos alguns disparos infrutíferos.
 
Toda a zona onde atuávamos, tinha sido alvo ao longo de vários meses, de diversas operações que incluíam forças terrestres, aéreas e hélio transportadas.
Talvez por isso, as forças inimigas estivessem, no momento, mais reativas?
 
No final da tarde, início da noite, escolhemos um local para pernoitar, comer a nossa ração de combate e montar a segurança que iria ficar vigilante durante a noite.
 
Recordo ainda aquelas noites de isolamento total, com uma orquestra de ruídos e sonorizações de intensidades diferentes, que nos obrigavam a dormir com um olho aberto e arma encostada ao corpo.
 
Não era fácil adormecer… e muitas vezes ficava a usufruir da escuridão da noite, com os olhos fechados durante algum tempo e ao abri-los ficar com uma sensação de vertigem, daquele céu cravado de estrelas, que se tornava ainda mais luminoso e parecia desabar sobre todos nós!
 
Na manhã do terceiro dia, levantámo-nos antes de romper o Sol.
Ingerimos alguns alimentos e entretanto, foram feitas algumas recomendações aos Soldados para que fossem atentos e se possível em silêncio, mantendo as distâncias; tendo sido alertados para um possível contacto com elementos da guerrilha, dadas as situações anteriormente verificadas.
 
Iniciámos o regresso em sentido contrário, para um local, algures na picada, aonde as nossas viaturas esperavam e nos trariam de regresso ao aquartelamento.
Sentia-se ao caminhar a humidade das ervas e do capim que persistentemente roçavam pelas nossas pernas, encharcando calças e botas, e que rapidamente secavam aos primeiros raios de Sol que começavam a despontar entre a vegetação.
 
O andamento cadenciado, o peso da arma macerando os ombros, o cansaço, a transpiração a despontar nos nossos corpos à medida que avançava o tempo a caminho da emboscada, desde sempre prevista mas nunca desejada… .
Ao fim de duas horas - 08h:50 - quando já próximos duma elevação relativamente baixa, aproximadamente com três metros e meio de altura no ponto mais elevado - pelo meio da qual seguia o trilho - com três metros de largura, que naquele ponto rasgava transversalmente a própria elevação. Obviamente, aquele corte de terreno terá sido feito para passagem de viaturas há muitos anos!... . Depois dos primeiros Soldados terem já atravessado, irrompeu um intenso tiroteio de armas automáticas, metralhadoras e rapidamente todos se deitaram pelo chão, ripostando de imediato e tentando abrigar-se onde fosse possível… só que o terreno não o permitia.
Mais de um terço do grupo ficou entalado entre “muros”.
Os restantes ficaram nos extremos, com mais possibilidades de fazerem o envolvimento e com melhor posição de fogo.
Durante alguns minutos, todos os nossos sentidos foram solicitados para que fosse possível aliar o raciocínio ao instinto de sobrevivência, debaixo de fogo.
Ouvia-se, juntamente com o estampido dos disparos, alguém que estava ferido e se queixava de dores, outros que tentavam dar algumas indicações e ainda uma série de variados problemas, com que cada um se teve de defrontar no limite das suas capacidades.
 
Ao fim de três ou talvez quatro longos minutos, tudo terminou após um disparo de bazuca que conseguimos efetuar e que levou o inimigo a retirar…
De imediato se fez avaliação da situação relativamente aos três feridos e às munições disponíveis.
 
Depois de montada a segurança no local, foram efetuados os primeiros socorros, apresentando um Soldado um ferimento de alguma gravidade.
Nesta situação, tentou-se a comunicação via rádio para evacuação, mas como acontecia com alguma frequência e tínhamos a perceção disso mesmo, por experiências anteriores, estávamos isolados!..
 
Ou por incapacidade do equipamento ou simplesmente por ninguém escutar, devido ao facto de não estar dentro da hora da exploração rádio!
 
Reiniciámos o regresso até ao local de encontro com as nossas viaturas, mais cedo que o previsto, com dois feridos amparados e outro em estado mais grave, em maca improvisada.
A deslocação, ao longo destes últimos quilómetros, foi feita sob uma tensão psicológica que se refletia nos rostos apreensivos, na precaução e no silêncio…
Não havia um sorriso, uma palavra, apenas o som das passadas e das botas esmagando as folhas, ao longo do caminho. .
 
Dado o estado dos feridos e sem possibilidades de comunicação, os três Furriéis que comandavam o pelotão, resolveram de comum acordo, que um deles teria de ir com um Soldado ao aquartelamento, distante alguns quilómetros e trazer as viaturas para recolher os feridos e os restantes elementos do grupo.
 
Após a evacuação para o Hospital Militar de Tete (norte de Moçambique), assim como a apresentação do relatório ao Capitão Comandante da Companhia, descrevendo os factos ocorridos durante esses três dias o Brigadeiro Comandante do Sector de Téte, mandou que o Furriel que comandava o pelotão, se apresentasse no Comando de Operações do nosso Batalhão, (Bat.Caç.2842).
 
O Brigadeiro também aí se deslocou e questionou-o sobre a ação, propriamente dita, na presença do Comandante de Batalhão e do Comandante de Operações, frente á grande carta militar que cobria toda a parede - o Furriel explicou todas as situações ocorridas, indicando na carta a posição das ocorrências, ao mesmo tempo que respondia ás questões colocadas pelos seus superiores.
Após as explicações, ficou surpreendido e perplexo?!
Ocorreram diversos casos semelhantes ao longo de dois anos e nunca teve conhecimento de qualquer reunião com o Comando...
Então o porquê desta reunião excecional?
Terá sido por o Alferes, Comandante do pelotão, não estar presente na ação?
Ou teria pensado o nosso Brigadeiro, depois das grandes operações efetuadas conjuntamente com as forças Rodesianas, que disponibilizavam os seus meios aéreos (helicópteros e tripulação) que o seu sector estaria “limpo” naquele distrito?
 
Uma noite, aproximadamente pelas 17h:30, começamos a ouvir um ruído ensurdecedor sobre o nosso aquartelamento e então, vimos surgir por cima da copa das árvores, os holofotes de 4 helicópteros sobre as nossas cabeças, aterrando dentro do nosso perímetro.
Para surpresa nossa, ficamos a saber que no dia seguinte, tínhamos pela frente uma operação que se prolongaria por alguns dias, durante os quais seríamos lançados diretamente nos locais de ação!
 
Outras operações se repetiram, mas esta provocou uma inesperada situação de terror, nas populações das aldeias em redor, devido ao barulho intenso na escuridão da noite e à forte iluminação que cegava por completo a visão dos aparelhos.
 
As populações - homens, mulheres e crianças - pegaram nos seus parcos haveres, abandonaram as aldeias aterrorizados e vieram refugiar-se junto do aquartelamento, sem terem a noção do que presenciavam!
Espantados por verem os aparelhos parados no ar, ficaram a observá-los incrédulos, durante essa noite e nos restantes dias!... .
 
Este relato, descreve apenas uma ação de combate, num dado momento, de um determinado dia, num determinado mês, num determinado ano!
 
Muitas outras aconteceram, a tantos outros como nós, que ao longo dos anos, ali foram cumprir em nome de Portugal a sua missão e por lá deixaram as suas vidas.
 
Narrado por: Guilherme Fernandes . .

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