segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

NOITE DE SENTINELA..., por José Godinho D'Abranches Leitão

In “Pedaços de memória…de rajada”

José Godinho D´Abranches Leitão

http://blog.comunidades.net/jdabranches/
Ex- Furriel Miliciano C. CAVª 2752
Moçambique 1970-1972
                    


Eram assim as primeiras noites de sentinela, do 4º Grupo de Combate naquele inferno chamado Serra do Mapé.
Ali fomos parar cerca de 120 jovens acabados de sair da adolescência, brutalmente lançados na fogueira da guerra colonial.
Os postos de vigia, eram feitos com um pequeno telheiro de chapa zincada e com barris cheios de areia, dispostos em meia lua, num morro logo à saída do abrigo subterrâneo.

O cenário era surrealista!
Alguns corações gravados nas aduelas dos barris, com as setas do Cupido das muitas namoradas, noivas ou mesmo mulheres de muitos que já por ali  passaram.

- Cabrões !
Com um piparote bem medido, Uvaldo espalmou o mosquito contra o pescoço. 
Já não me lixas mais.

Sentia-se chegar ao limite da resistência, os tornozelos e os nós dos dedos dolorosamente inchados de tanta ferroada.
Prestes a desatar aos berros.
Ao redor do aquartelamento, à volta dos 4 postes de iluminação que mal iluminavam, os mosquitos saíam da noite em nuvens cerradas.
"Maldita terra, malditos mosquitos.
Não bastava este calor de morrer."
Pousou a G-3 no parapeito do posto de vigia e pôs-se a espiar o negrume.
Múltiplos ruídos, indestrincáveis, de todos os timbres, elevavam-se ao redor das lâmpadas...
Era um zumbido esquisito e suspeito.
Por instantes esqueceu-se dos mosquitos, percorrido por um arrepio.
Mas o ressonar dos dois camaradas, mesmo no abrigo junto, serenou-o.
- Se estivesse sozinho morria de cagaço, pensou o Uvaldo!...

Olhou o relógio de pulso.
Os ponteiros fosforescentes indicavam as três horas da madrugada.
Dentro de três quartos de hora despertaria o Zé da Povoa para o render.
Seria a sua vez de ferrar o galho, se fosse capaz.
Apetecia-lhe fumar um cigarro mas a disciplina imposta pelo Furriel que comandava a Secção, sobrepôs-se ao desejo.
Não lhe apetecia mesmo nada apanhar uma porrada ou levar um tiro, pois o IN podia detetar a incandescência do apetecido cigarro na penumbra da noite.
"- Sentinela, éh sentinela !"
Emaranhado nos seus pensamentos, levou tempo a recompor-se.
- Estavas a dormir, logo na primeira noite ?
Pela voz, reconheceu o furriel Leitão.
- Aqui no poleiro, não dá o sono a ninguém, meu furriel.
- Podia passar por aqui um regimento de turras que não davas por nada.
Vamos lá a ver se abres mais os olhos.
Uvaldo sentiu os passos do furriel perderem-se na noite.
Enervado, tornou a olhar o relógio. Estava na hora. Até já passavam cinco minutos.
- Acorda, Zé, está na hora.
O camarada soergueu-se da cama improvisada, estremunhado.
- Já ? Não me estás a tramar ?
- Vá, levanta-te. Não acordes o Vidinha.
- Logo agora que estava a sonhar com a minha mulher, que deixei lá no bairro das Caxinas.
Tens um cigarro ?
- Olha o Furriel.
- O Furriel foi dar a volta aos outros postos.
Só daqui a 20 minutos é que volta a passar.
Dá cá o cigarro que eu uso o quico e faço um buraco no chão para botar o fumo fora!
O clarão do fósforo iluminou dois rostos terrosos. Depois ficou a ponta vermelha do cigarro a fazer arabescos na noite.
Podia ver-se a 500 metros bem lá no fundo da pista.
- Não te deitas ?
- Não tenho sono. Fico contigo um bocado.

- Saudades? Deixa lá que 4ª feira é dia de São Correio e já estávamos a 3 dias.

Falavam em surdina, para não acordar o Vidinha.
Os mosquitos parece que foram pra outras bandas.
Entretanto, sai do abrigo o Raposo, que não tinha sono nenhum.
- Sabias que as peras que trouxe da minha terra, ainda estão rijas como cornos? - disse o Uvaldo.
-Ainda duram? Perguntou o Zé da Póvoa, dizendo que julgava que tinham acabado ainda em pleno alto mar.
- E tu sabias que deixei um filho na barriga da minha mulher?
- Puta de merda esta guerra!
- Dizes bem, esta merda.
Subitamente, um estampido acordou a noite.
- Ouviste ?
- Foi no posto junto à porta de armas.
Soou outro tiro, logo seguido duma rajada.

Silenciosamente aproxima-se o Furriel que anda a fazer ronda.
Eram 4 da matina.
Passa palavra e vai avisar o Comandante.

Pela vala comum, tropeçando em dezenas de ratos, o Gouveia que entretanto tinha também saltado do abrigo.
- Será um ataque?
Disparou um “verilaite” para o ar e nada!!!
Ficamos de dedos crispados nas G-3.
O Congolo, negro como um tição aparece e prega-nos um susto do caraças.
- Terá morrido alguém ?
- E nós aqui sem saber de nada.
- Que porra de situação.
- Calma - aconselhou Furriel. - Não me parece coisa grave.
- Sentinela! Sentinela? – alguém murmurava próximo.
- Quem está aí ? - perguntaram em coro.

- É o furriel Crispim. Estejam tranquilos que ainda não é desta que vão morrer.
Foi o Palhaço que julgou ter ouvido um ruído estranho e desatou às rajadas como um maricas.
Algum bicho que tocou nas latas penduradas no arame farpado.
- Que cagaço, meu furriel ! Disse o Uvaldo.
- Já pensávamos que os turras tinham atacado.
-O Palhaço insiste que viu 2 turras já dentro da 2ª linha de arame farpado!!!?
- Também não tinham sorte nenhuma, pois o Furriel Godinho tinha a zona toda armadilhada com minas, e dificilmente chegariam inteiros ao arame farpado da 1ª linha.
- Ponham-se mas é a pau com os ataques dos mosquitos e olhos bem abertos!
Olhos bem abertos. ok? Gritou o Capitão.
- Que susto aquele gajo nos pregou - desabafou o Zé da Póvoa. - Ia-me borrando todo, meu Capitão.
- O furriel disse que eram as latas mas podiam muito bem ter sido os turras.
- Nunca se sabe.
- Afinal, quem é que está de sentinela? Eu ou vocês ? – questionou o Furriel.
 
Depois de passar palavra e feita uma incursão pela pista, tudo voltou à normalidade.
O Capitão reúne os Comandantes dos Grupos de Combate para fazerem um ponto da situação.

Já ninguém mais dormiu nessa noite.
Amanhece.
O cheiro da terra fendida e os boqueirões rasgados na picada, cheios de sede são característicos da Africa, bem diferente do nosso.
Pouca água e uma vegetação serrada, aliados ao imenso calor, contribuem para este cheiro da terra.
O 3º Grupo de Combate do Alf Lourenço Marques vai à água.
 
O furriel Marques do Obus, prepara-se para iniciar a saudação matinal de 2 ou 3 “morteiradas” do Obus 14.
A Frelimo temia esta arma e não se atrevia a grandes aventuras nas proximidades do aquartelamento.

Mais tarde viemos a saber que não era bem assim.             

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