sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

O Cândido Sorriso de Gioconda


Sobre mim um rosto de mulher mansamente sorridente olha-me com ar profissional, como se olha uma peça de lombo de porco num talho, para avaliar o seu estado de frescura.
Eu estou estranhamente calmo também, deve ser do que o enfermeiro Costa me mandou prá veia.
Ela, que veste uma t-shirt branca em vez da parte de cima da farda, sente-me o pulso e verifica a válvula do saco de soro, mais como se seguisse um ritual do que se acudisse a uma necessidade. 

Haverei de vê-la, um dia numa bicha para o cinema em Lisboa, pôr um marinheiro KO, que lhe apalpou o rabo.
Chutou os sapatos de salto alto, um para cada lado, arregaçou a saia travada até cima, rodopiando sobre si mesma e partiu-lhe a cana do nariz com um calcanhar.
E tudo com aquele ar mansamente sorridente.
 
Agora, olhando-a a repartir a sua serena atenção pelo meu pulso, pelo saco do soro e pelo que resta da minha perna esquerda, entrapada numa ligadura mal amanhada, a sair por entre as tiras do camuflado, que parecem ter sido rasgadas criteriosamente para terem a mesma largura; agora, ali, ninguém diria que seria capaz de partir o nariz a um marujo.

Equilibra-se fazendo um bailado acrobático, à medida que o helicóptero progride, ora adornando para um lado e para o outro, ora dando solavancos que fazem estalar a maca debaixo de mim. O helicóptero tem as portas abertas e ela não parece temer ser lançada borda fora. Dança, dando pequenos paços, fletindo as pernas, passando uma, às vezes, por cima de mim, para o outro lado da maca, sem quase nunca precisar de se apoiar nas mãos, entretidas na sua função de auscultação, palpação e regulação; às vezes dando pequenos piparotes com o indicador no tubo do soro, às vezes aliviando o garrote que me aperta a coxa, às vezes pousando a palma suavemente sobre a minha testa.
 
Baixa-se para me gritar ao ouvido, tentando sobrepor-se à percussão do rotor e ao silvo da turbina do helicóptero: − Tudo bem? − Tenho frio! − É normal! E o cheiro a suor de mulher ficou um pouco a pairar à minha volta.
 
O piloto bate no separador que divide o seu cubículo do resto do habitáculo e fecha violentamente a mão direita sobre o pulso da mão esquerda em sinal de ela deve segurar-se.
 
Só agora percebo os pequenos estalidos na fuselagem do Alouette III − estamos a ser alvejados.
O piloto faz o aparelho adornar completamente, mergulhando para o lado esquerdo e eu vejo a selva ao fundo debaixo de mim.
Uma bota apenas, como um ponto de mira, a meio da porta aberta, a apontar o perigo lá em baixo e o calmo sorriso da enfermeira, agora deitada a meu lado, no chão do habitáculo, com um braço estendido para o saco do soro, passando-me por cima e o cheiro a mulher que traz um pouco de humanidade ao que resta de mim.
 
As feromonas femininas a inundar o macho ferido e a trazê-lo de volta para a vida. Pode ter sido do que o Costa me injetou na veia, mas não tenho nem medo nem pressa. Nem os impactos dos projéteis das Kalashs no helicóptero me assustam.
Aquele sorriso impávido e profissional da enfermeira e a sua atenção mais ao ato médico do que a mim, inspira-me uma segurança quase total.

Se me dissessem agora que aquela enfermeira haveria um dia de ser decapitada pela hélice de uma DO, durante uma evacuação, eu converter-me-ia a uma religião qualquer, só para pedir a deus que a poupasse.
 
Aquele sorriso quase esfíngico, quase angélico, quase humano, quase feminino; a um palmo do meu rosto, a encobrir o medo – porque decerto ela se sente, modestamente, com menos direito a ele do que eu, dedicada à sua missão de salvar, a única missão nobre que há numa guerra; aquele sorriso profissional, que inspira confiança sem violar os limites pudicos da intimidade; aquele sorriso camarada sem o humilhante paternalismo da piedade, fez renascer em mim o amor-próprio e gerar um profundo sentimento de gratidão.
 
Por isso, quando recebi a notícia da sua morte tive a cobardia dos ateus perante a impotência, face à finitude absurda da vida, e dei por mim a pedir a deus que fosse mentira, que não passasse de uma das muitas mentiras da gerra.
 
Lentamente, com o tempo, a sua imagem desvaneceu-se, o cheiro bom das suas feromonas esfumou-se e o seu sorriso que ministrava como um lenitivo, apenas na dose certa, feneceu devagar na minha memória.
 
Mas quando à minha frente, largando sangue, como se uma fita vermelha lhe saísse pelo nariz, um marujo com ar de rufia se levanta a medo do chão; quando olho para o vulto feminino descalço à frente dele, de saia arregaçada até às calcinhas com aquele ar de Gioconda, sereno, quase terno, de quem se sente na maternal obrigação de cuidar dos desvalidos, a ponto de me parecer ouvi-la dizer: "Tudo bem?... É normal!", não contive as duas grossas gotas de água que inundaram os meus olhos e toda a estrutura racional que sustenta as minhas convicções de ateu, abalaram de alto a baixo.
 
Acho que foi aí que se operou em mim a mais gigantesca transformação metafísica de toda a minha vida.
Entre acreditar que deus não existe e não acreditar que deus existe há mais que um simples trocadilho, há a memória desse cândido sorriso de Gioconda a lembrar-me quão insignificantes somos nós perante os grandes conflitos da existência.
 
A minha falta de fé deixou de ter a arrogância dos que apenas possuem certezas, sejam crentes ou ateus, para passar a ser a simples e modesta assunção da incapacidade de conter dentro de mim, este ser exíguo e perecível, o conceito absoluto e sempiterno de deus.
 
Estarei condenado a ser um limitado descrente, onde não cabe a transcendência divina, mas não nego que todo o meu ser se deslumbra com a sua beleza, enquanto entidade poética.
© Manuel Bastos (*)

Manuel Correia de Bastos, ex-Furriel Mil.º da Companhia de Artilharia 3503, esteve em Mueda (Moçambique), desde 12 de Fevereiro de 1972 até ter sido ferido em combate em 4 de Junho devido à deflagração de uma mina antipessoal.

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