sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Juro Que Vivi..., por José Nobre

Juro Que Vivi.......
Moçambique – Agosto 1967 – Outubro 1969.
A Coluna militar – Outubro de 1967.
Não sei porque fiquei dois meses em Lourenço Marques. 



Não sei porque fui um dos trinta condutores escolhidos para levarem viaturas para o norte de Moçambique, para Cabo Delgado. 
Uns dizem que foi o destino, outros que foi uma sorte, outros que foi um azar do caraças, fazer mais de 3.000 Kms de picadas, até Mueda, passando pela Beira, Nampula e Nacala. 
Fiquei a conhecer um pouco melhor aquela terra, as suas gentes e a vida dos colonos, aqueles que viviam fora das grandes cidades, que viviam e mandavam nas grande fazendas, onde trabalhavam centenas de negros, quase escravos....quase. 

O que vi...o que vivi nunca mais esquecerei. 
Conheci aquele povo africano, aquelas crianças que se aproximavam de nós, quando parávamos para comer, para abrir mais uma ração de combate, aqueles olhos, aquele sorriso e aquelas barrigas dilatadas....crianças, como as nossas, como as brancas, que não falavam a nossa língua, mas que nos diziam tudo com o olhar.

Dormimos em fazendas enormes, onde trabalhavam centenas e centenas de negros, um trabalho quase escravo, de sol a sol, sem assistência médica ou outra qualquer,...quase escravos....quase.
Falamos com fazendeiros, quando éramos convidados a beber um café, ou a beber uma cerveja acompanhada de castanha de cajú assada. 
E nessas ocasiões falávamos de tudo, das negras, dos putos mulatos, dos “cabaços” comprados por vinte escudos, das noites nas palhotas e da boa vida dos proprietários, muitos deslocavam-se de avião, tinham os filhos a estudar nas grandes cidades onde também tinham apartamentos. 

Numa das fazendas a uns 200 Kms da cidade da Beira, o capataz dessa fazenda, entre um trago na cerveja e uma fumaça no cigarro disse-nos. - Os gajos (trabalhadores) são pagos sempre em moedas, nada de notas...as notas não fazem barulho e eles ficam contentes com o barulho das moedas.

Juro que vi...juro que vivi. 

Paramos para almoçar à beira da picada, entre a cidade da Beira e Nampula, um calor do caraças, a água do cantil quente, mais uma ração de combate...mais uma. 

Estava encostado à roda da frente do meu Unimogue, ao meu lado o meu irmão Fernando Moreira e o Quintela, denominado o Bimbo o gajo de Vila do Conde, o gajo que trocava os “V” pelos “B”....o gajo que tinha um coração do tamanho de um comboio. 

Nobre, já viste aqueles dois putos? 
Um menino e uma menina....nus, parados a uns dez metros de nós, olhando-nos fixamente, esperando que atirássemos as latas de conserva vazias para o mato, para as irem buscar e com os dedos agarrarem o que restava da gordura das mesmas. 
Roeu-nos a consciência, o Quintela foi o primeiro a falar – Foda-se, eu não posso ver isto, Quem tem bolachas? 
Vamos dar de comer aos putos. 
E demos, apareceram mais uns quantos que levaram o que restava das rações de combate...e lá foram...e eu? 
Eu chorei ,agarrado ao volante do meu Unimogue, enquanto fumava um cigarro, vendo os putos afastarem-se a caminho de nenhures.

Não. 
A minha guerra não foi só uma guerra de armas....foi uma guerra de muitas “merdas” que ainda hoje me roem a consciência, me questionam......e eu faço de conta e digo para mim mesmo, marroquino, não foste tu que lá estiveste, foi um gajo com um pouco mais de vinte anos, imaturo e branco.

Dedicado ao, Amável Lopes Baptista, ao Bibiu, ao Camilo Alves e ao alferes, Guerra.
Lourenço Marques – Beira – Nampula – Nacala – Mueda . Muidumbe . Miteda – Nangololo – Nangade - Pundanhar – Palma – Mocimboa da Praia – Moatize – Tete - Bene . Zobué – Cassacatiza e todos os outros locais dos quais já me esqueci dos nomes......e todos os outros dos quais não me quero lembrar.

Bem Hajam.

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