domingo, 18 de novembro de 2018

O Chico mecânico..., por José Nobre



José Nobre
15/09/2018
Nunca Atirei Pedras Aos Cães.
Preâmbulo.
"Quando começamos a recordar, perdemos a noção do tempo e do espaço.
Voltamos ao tempo em que não havia tempo."

Foi esta a frase de um ex-Alferes.,durante o último almoço, de confraternização, da Companhia de Cavalaria 1728, realizado no passado mês de Junho/2016.
- Marroquino, lembraste do Chico mecânico de Moatize?
- Lembro-me, mas nunca mais pensei nele. Devo ter alguma coisa anotada num papel qualquer.
- Então verifica se tens. Lembraste da primeira vez que o vimos, na nossa chegada ao quartel de Moatize?
Fui verificar, e tenho um único apontamento no famoso caderno das dividas, e lá está." 
Pagar as bananas e o ananás ao Chico mecânico - 12$50."
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" A guerra dá uma excelente história,mas a paz é uma leitura
aborrecida."
( Thomas Hardy - 1840 - 1928 )
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Moatize - Distrito de Tete - Moçambique
Maio de 1968 a Março de 1969.
A primeira vez que o vimos, foi no dia da nossa chegada a Moatize. 
Descemos do comboio na estação, onde nos esperavam várias viaturas, para nos levarem para o quartel. 
Fomos render uma outra companhia militar, que estava de partida para outras paragens.
Lá estava o Chico mecânico, evidentemente que não se chamava Chico. 
Era ele que ajudava os condutores e os mecânicos, no desempenho de algumas funções, tais como...encher pneus, mudar rodas e outras coisas mais ou menos pesadas.

A idade?
Não tinha idade o Chico.
Talvez uns 30 anos.
Já tinha visto desfilar muitas companhias militares em Moatize. 
Falava bem português e era de étnia Nyunge ou Nhungé, nunca chegamos a perceber.

Todas as manhãs, lá estava o Chico à porta do quartel, juntamente com as lavadeiras que nos vinham entregar a roupa lavada.
Só ele é que tinha autorização para entrar no quartel. 
Dirigia-se para o parque automóvel, que mais não era, que um telheiro coberto com chapas de zinco e assentes em barrotes de madeira.
Nada tinha de parque automóvel, mas essa era outra questão.
Gostava de pão com marmelada, e do café do pequeno almoço.
Tinha sempre a sua parte, ninguém se esquecia dele, por vezes até sobrava, e ao final da tarde, ele metia tudo dentro de um pequeno saco e levava para a palhota.
Se tinha mulher?
Nunca perguntamos.
Se tinha filhos?
Nunca nos disse.
Sempre pontual.
Almoçava e jantava no quartel, junto da cozinha e sentado num degrau.
- Soldado não gostar da comida da tropa? Comida ser boa.....

De vez em quando e quando era necessário ir à estação buscar mantimentos que tinham chegado no comboio,o Chico também ia, sentado num dos bancos laterais do Unimog, vaidoso e a fazer adeus aos conterrâneos.

Fartava-se de trabalhar o Chico.



Um dia decidimos ensinar o Chico a conduzir.
Primeiro num Jeep, tipo daqueles americanos, que só tínhamos visto nos filmes, antes de embarcarmos para África.
Depois e como já sabia dar umas voltas, passou para o Unimog.
Sempre acompanhado, chegava ao final do parque, metia a marcha-atrás e voltava ao local de partida, não mais do que 300 metros.

Chegou o dia de fazer o percurso sozinho.
Todos os condutores assistiam às manobras com um sorriso nos lábios.
Ficou aprovado.
Bateu com a mão no peito, gesto que fazia sempre, quando recebia qualquer coisa, ou quando estava contente e gritou.
- Eu ser condutor como o branco, e abraçou a malta toda.

O Chico,tinha acabado de ganhar o seu campeonato.

Passados alguns dias, o comandante da companhia, ficou a saber da nossa história, e das aulas de condução do Chico Mecânico.
Irritou-se, chamou nomes a todos, prometeu carecadas,mas no final, acabou o discurso dizendo: Há coisas piores.

Não me lembro se paguei as bananas e o ananás ao Chico Mecânico, No caderno das dividas não aparece a menção "pago."

PS - Esta história nunca seria contada, sem a ajuda de todos os meus companheiros, sobretudo os condutores,que estiveram presentes no último almoço da nossa companhia.
Obrigado a todos.

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